Fogo, inundações, catástrofes climáticas, destruição de terras e mudanças no clima, perigo e terror — tudo isso apavora o imaginário coletivo quando se fala sobre o fim do mundo, seja em uma conversa na mesa do café, seja em filmes, livros ou séries. O tema sai das telas e retorna à superfície do inconsciente coletivo sempre que algum evento histórico abala o cotidiano. Isso vale tanto para mudanças no calendário, como o "Bug do Milênio", quanto para previsões catastróficas, como a profecia Maia de 2012 — inclusive retratada no cinema por Roland Emmerich —, ou ainda na série de sucesso atual "The Last of Us", criada por Craig Mazin e Neil Druckmann para a HBO. Na série, o fim da civilização é causado por um fungo, trazendo um terror biológico ao enredo.

Em 2020, teorias da conspiração voltaram à tona com o temor de uma terceira guerra mundial e o surgimento de uma pandemia viral, reacendendo as discussões sobre o “fim dos tempos”. Teorias que, apesar de diferentes, compartilham elementos comuns: seus gatilhos emocionais.

O professor de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – Câmpus Londrina, padre Gelson Luiz Mikuszka, comenta que essas teorias ressurgem especialmente em momentos de comoção, como a morte de um papa. O falecimento do papa Francisco, anunciado na última segunda-feira (21), reacendeu duas profecias populares: a “Profecia dos Papas”, também conhecida como Profecia de São Malaquias, e a profecia de Nostradamus. Como exemplo, o professor relembra a virada do ano 2000, quando houve “muitos questionamentos e muitas profecias milenaristas”. Segundo ele, “ao longo do tempo, as pessoas fantasiam muito com o fim do mundo. É quase que normal. Esse tipo de profecia e suas interpretações surgem para mexer com as emoções das pessoas”, pondera.

A profecia de São Malaquias

Para Mikuszka, há muito de literatura e interesses pessoais nas formas como essas profecias são interpretadas. Ele reforça que se tratam de “interpretações especulativas”, por vezes associadas a “teorias com interesses conspiratórios”, sem “base sólida” e com caráter majoritariamente “fictício”. “Veja, a profecia de São Malaquias, por exemplo, foi publicada em 1595, no século XVI, 450 anos após a morte dele, pelo monge beneditino Arnold de Wyon, no livro Lignum Vitae”, conta.

Página 311 de "Lignum Vitae" (1595) por Arnold Wyon
Página 311 de "Lignum Vitae" (1595) por Arnold Wyon | Foto: Reprodução

O texto é composto por 111 lemas em latim atribuídos a São Malaquias, que supostamente descrevem o fim dos tempos a partir das eleições papais. O tema voltou à tona com a expectativa de um novo conclave. “Teólogos e estudiosos apontam que se trata de uma possível falsificação do século XVI, talvez criada para influenciar os conclaves papais, ou seja, para manipular a escolha dos papas”, explica.

O último papa

Mikuszka explica que os 111 lemas cobrem desde o Papa Celestino II (século XII) até um suposto último pontífice, chamado Petros Romanos ("Pedro, o Romano"). Hoje, tenta-se, de forma forçada, associar o papa Francisco a essa figura, ainda que ele não se chame Pedro, Petros ou Romano. As justificativas para essa associação incluem o fato de Francisco ser jesuíta (ordem fundada em Roma) e por ter promovido reformas na Igreja.

O professor aponta inconsistências e controvérsias em relação à profecia, como a falta de precisão histórica. “Os lemas são muito genéricos e são interpretados da forma como cada um quer. Não há uma interpretação oficial da Igreja”, destaca.


icon-aspas "Elas (as interpretações) assustam, deixam que pessoas fiquem mais ansiosas do que já são, com dificuldade de compreender as coisas e mais confusas"
Pe. Gelson Luiz Mikuszka -

Outra controvérsia fundamental, segundo Mikuszka, é que a Igreja Católica não reconhece a profecia como autêntica. A Igreja a classifica como uma "curiosidade histórica sem valor teológico". Mikuszka explica que, para a Igreja, uma profecia autêntica deve ser "baseada na palavra de Deus, na Sagrada Escritura, falas ou crenças sem essa base não são consideradas consistentes".

O professor argumenta ainda que essas interpretações que levam a crer que "tudo vai acontecer assim, que a profecia tá certa, que alguém vai acabar com o mundo ou acabar com a igreja" são, na verdade, interpretações que têm "os seus interesses" e enumera o impacto negativo que tem sobre as pessoas. "Elas (as interpretações) assustam, deixam que pessoas fiquem mais ansiosas do que já são, com dificuldade de compreender as coisas e mais confusas. É importante estar preparado par anão cair nesse tipo de argumento".


Ilustração "Como o Papa é Eleito" por W. J. Wintle. Publicado na London Magazine em junho de 1903.

Nostradamus e a profecia do papa Negro

Michel de Notredame, conhecido como Nostradamus, foi um astrólogo, médico e vidente francês que viveu entre 1503 e 1566, em um período marcado por guerras religiosas e pela peste negra. Essas experiências influenciaram suas visões apocalípticas. Médico da corte do rei Carlos IX da França, ele ficou conhecido por utilizar horóscopos no tratamento de doenças. Sua obra mais famosa, Les Prophéties, publicada em 1555, reúne 942 quadras poéticas com previsões enigmáticas, cheias de simbolismo e linguagem ambígua.

Supõe-se que ele tenha previsto eventos como a Revolução Francesa, a ascensão de Hitler (com o nome “Hister”), os ataques de 11 de setembro (“fogo que treme do centro da Terra”) e, dentre essas previsões, uma das mais citadas é a do chamado "papa negro", presente na Centúria II, Quadra 22:

"O sagrado templo será reconstruído pelo Pontífice,

Mas grandes enganos passarão por debaixo do dossel.

Um eleito de cor negra será colocado no trono,

Trazendo profanação e derramamento de sangue sagrado."

Segundo Mikuszka, esse trecho é frequentemente interpretado como um aviso sobre uma crise na Igreja Católica. No entanto, ele explica que essas leituras são enviesadas e alimentam teorias conspiratórias contra a Igreja. “Essas teorias vêm desde o século XIX e alegam que a ordem dos jesuítas controla e é controlada por governos e líderes religiosos mundiais. A ideia é que o ‘papa negro’ seria um líder maligno, manipulador da religião para dominar o mundo”, afirma.

Ele esclarece que o termo "papa negro" não se refere à cor da pele, mas ao hábito negro usado pelos jesuítas. “É uma referência à influência histórica da ordem jesuíta, que teve papel central na Contrarreforma e na educação, frequentemente enfrentando controvérsias ao longo da história.”

“Essa questão sempre ressurge quando um conclave é aberto, pois se cria expectativa sobre quem será o novo papa”, conclui.

Óleo sobre tela, 1680 x 1280 mm. Casa Cadaval, Muge, Portugal.
Obra de autor desconhecido com a efígie do célebre padre jesuíta António Vieira, retratado num escritório, com o manuscrito da Clavis Prophetarum. Na obra pode ser visto os trajes comuns dos representantes da Companhia de Jesus
Óleo sobre tela, 1680 x 1280 mm. Casa Cadaval, Muge, Portugal. Obra de autor desconhecido com a efígie do célebre padre jesuíta António Vieira, retratado num escritório, com o manuscrito da Clavis Prophetarum. Na obra pode ser visto os trajes comuns dos representantes da Companhia de Jesus | Foto: Reprodução

Leia outras reportagens da FOLHA sobre o fim do mundo:

HISTÓRIA — O fim da cidade que anunciava o fim do mundo

O fim do mundo de todos os tempos da última semana

SERÁ O FIM DO MUNDO? — Pandemia reacende teorias da conspiração na web

mockup