É inegável que os sentimentos negativos e tão inesperados trazidos pela pandemia multiplicaram de maneira exponencial os problemas psicológicos das pessoas. O isolamento social, associado às perdas e ao medo, simplesmente acendeu um barril de pólvora na cabeça dos cidadãos. Uma situação-limite que, felizmente, encontra um exército de voluntários para prestar suporte a essas pessoas, um atendimento tão essencial inclusive para preservar novas vidas em meio ao caos. Uma das ações benfeitoras surgiu em Londrina. Trata-se do projeto Suporte Psicológico Covid-19, uma iniciativa da UEL que começou no início da pandemia e já soma mais de 400 atendimentos até então.

Imagem ilustrativa da imagem Pandemia provoca piora da saúde mental,  mas iniciativas voluntárias contra-atacam
| Foto: Marco Jacobsen

Quando o caos encontra o aconchego

Luto, ansiedade, depressão. Isso sempre causou problemas psicológicos antes da pandemia. Com o coronavírus, a escala se multiplicou. Especialistas alertam que a imprevisibilidade dos acontecimentos e a longa duração do sofrimento gerado pela Covid-19 tendem a resultar em forte abalo emocional. Não há saúde mental que resista.

“Agora é comum ouvirmos a frase ‘o Covid está chegando cada vez mais perto’, e isso reflete que a maior parte das pessoas pode estar vivendo o luto. Há diferentes efeitos psíquicos que essas mortes diárias podem trazer, como o sentimento exacerbado de medo, desamparo e vulnerabilidade, além do surgimento de quadros de depressão, ansiedade, TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), Transtorno do Estresse Pós-Traumático e o agravamento do estado psíquico de pacientes que já sofriam de transtornos mentais antes da pandemia”, lista Vanessa Santiago Ximenes, gestora da Assessoria de Comunicação do projeto Suporte Psicológico Covid-19, desenvolvido pela UEL.

Imagem ilustrativa da imagem Pandemia provoca piora da saúde mental,  mas iniciativas voluntárias contra-atacam
| Foto: Marco Jacobsen

A pandemia deixou a saúde mental da população em frangalhos, mas iniciativas voluntárias estão atuando no contra-ataque para minimizar os efeitos tão danosos ao psicológico das pessoas.

É o caso do projeto Suporte Psicológico Covid-19, que começou as atividades em março do ano passado, mês em que foi deflagrada a pandemia. A iniciativa é da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UEL, de professores do Departamento de Psicologia Geral e Análise do Comportamento e da Residência em Psiquiatria e do Design Gráfico, com apoio da Pró-Reitoria de Extensão.

A motivação para a criação do projeto surgiu quando os profissionais tiveram contato com as primeiras informações sobre os impactos emocionais gerados pelo avanço do coronavírus e pelas medidas para reduzir a propagação da Covid-19.

“Tudo era ainda muito distante, visto que estava acontecendo na China, porém já estava sendo reportada a seriedade dos efeitos da Covid-19 na rotina das pessoas. Foi então que se observou a necessidade de oferecer um apoio emocional visando prevenir danos psicológicos e promover a saúde mental de todos aqueles afetados pela doença”, diz Vanessa Santiago Ximenes, gestora da assessoria de comunicação do projeto.

O projeto atende pessoas maiores de 18 anos que estejam em estado de sofrimento emocional devido à crise pandêmica atual.

É oferecido suporte psicológico, que é diferente da psicoterapia tradicional. O suporte psicológico é realizado primeiramente em 4 sessões online. Caso seja necessário, outras 4 sessões podem ser realizadas, totalizando oito sessões.

Se ainda assim esse número de atendimentos não for suficiente para amenizar o sofrimento emocional, a pessoa atendida é encaminhada a outros serviços fora do projeto, como atendimento com psicólogos parceiros voluntários ou em serviços gratuitos como Clínicas-Escola, por exemplo.

A problemática central deve estar relacionada aos impactos da Covid. Todos os atendimentos são gratuitos, sendo realizados via remota (celular, chamada de WhatsApp, Meet, Zoom e outras plataformas virtuais).

Os atendimentos são realizados por 39 pessoas, entre psicólogos e estudantes de psicologia do 4º e 5º anos da UEL. Todos os colaboradores do projeto são voluntários. Existe uma equipe voltada para a realização de processos seletivos para recrutamento de novos voluntários, que ocorre a partir da identificação de novas demandas dentro do projeto ou do desligamento de membros. Desde o início das atividades, 215 pessoas já foram atendidas.

Grande parte das pessoas atendidas são profissionais da saúde, mas já foram atendidas pessoas que pegaram Covid e estavam com bastante medo de como a doença se desenvolveria ou de suas sequelas.

“Também atendemos muitos casos de familiares enlutados. No início, nossa população-alvo era os profissionais de saúde de Londrina e região, mas com o tempo fomos ampliando para a população em geral, de diversas partes do país, que sofram direta ou indiretamente com a Covid. Na realidade, já atendemos brasileiros residentes até em outras partes do mundo”, diz Josy Moriyama, uma das coordenadoras do projeto.

Renata Grossi, que também atua como coordenadora do projeto, destaca que existe um respeito e um senso de ajuda mútua entre todos os integrantes, algo “que é maravilhoso de sentir”.

“Isso tudo nos traz um sentimento de pertencimento, algo que é tão importante neste momento, onde tudo acontece de forma remota. Também nos sentimos surpresas por vermos o projeto funcionando, com tantas pessoas envolvidas, que realmente acreditam nele. Não dá para negar que também sentimos medo pelo tamanho e proporção que ele chegou e por estarmos sendo desafiadas o tempo inteiro. Desde a demanda que aumenta a cada dia, até o fato de tudo ser muito novo, precisamos estar sempre aprendendo, investindo em conhecimento, criando novas formas de trabalhar e servir. Diante de tudo isso, acreditamos que o maior sentimento é de realização.”

GUERRA

A neuropsicóloga voluntária Michele Marcondes dos Reis sempre participou de trabalhos voluntários, mas com a pandemia percebeu que precisava ajudar mais. “Esse momento pandêmico é como uma guerra, todos necessitam de ajuda”.

O trabalho de ajudar os outros no projeto Suporte Psicológico Covid-19 lhe deu ainda muito mais forças para enfrentar a sua realidade – o marido de Michele pegou Covid em agosto do ano passado e chegou a ficar dependente de ventilação mecânica por 45 dias. Após 57 dias internado no hospital, foi montada uma UTI domiciliar na casa deles.

“Foram dias de absurda tristeza, porque é uma doença extremamente cruel. Você acordava, não tinha notícias, situação difícil de melhora e piora, uma montanha-russa. Ao mesmo tempo, eu continuava fazendo atendimentos na clínica particular e no projeto”, relembra Michele.

A melhora só veio em janeiro deste ano, quando o marido dela, aos poucos, foi retomando a rotina. Antes disso, foram inúmeras noites mal dormidas, sendo que Michele acordava à noite para auxiliar o marido a fazer xixi, por exemplo. Os cuidados também incluíam a sogra, com 95 anos.

“O pulmão do meu marido chegou a ficar 70% debilitado, hoje está 40%, tem fibrose. Ele se cansa mais rápido, o rim ficou um pouco sequelado. Ele ainda trata escara no hospital. Vai fazer um ano agora em 25 de agosto. O que me trouxe vida, fora cuidar dele, foi esse projeto, de cuidar das pessoas que precisam de ajuda, com os alunos aprendendo também.”

O trabalho voluntário chega a ocupar 20 horas durante a semana de Michele, seja escutando pessoas impactadas pela pandemia ou auxiliando psicologicamente quem está na linha de frente, como é o caso dos encontros semanais com a equipe de assistentes sociais do Hospital Universitário.

Além de prestar os atendimentos, Michele é gestora de relacionamento e gestão do projeto. Ela integra uma equipe que procura entidades, como hospitais, bombeiros, Polícia Militar, entre outras, fazendo uma busca ativa de gente que possa estar necessitada de um atendimento psicológico. A equipe presta explicações e se coloca à disposição para atendimento a quem está sofrendo por conta da Covid, além de enviar material informativo.

CASOS

Entre os casos que mais a marcaram nesse quase um ano e meio de projeto, Michele relembra de uma residente em veterinária que perdeu o pai pela Covid e logo depois o namorado, com quem tinha 4 anos de relacionamento, que terminou com a paciente pelo telefone. Outro caso marcante foi de uma mãe que perdeu o bebê com 8 meses de gestação após ser acometida pelo coronavírus. Muitos dos pacientes querem recorrer ao suicídio. “Isso mostra o quanto a gente precisa cuidar da nossa comunidade.”

Michele compara este momento a uma guerra. “Mesmo as pessoas que negaram a doença, que pensam diferente, não deixa de ser uma forma de sofrimento. Tem pessoas morrendo de medo, que não saem de casa há um ano e meio. Outras perderam o emprego, a família, ou amigos. É praticamente impossível não ter problema emocional. Eu, com a situação do meu marido, voltei a tomar remédio e intensifiquei minhas terapias, que eu sempre fiz desde que me formei, há 22 anos.”

AUTOCUIDADO

Na questão emocional, Michele destaca que o momento deve servir de reflexão e aprendizado sobre o autocuidado. “Se você não se cuidar, você vai enlouquecer. Faça um exercício físico, talvez uma terapia, continue teu trabalho presencial ou de forma remota.”

Essas atividades mantêm um pouco a integridade. “Com tudo isso que vivi, o que me trouxe tranquilidade e sanidade mental foi entrar para o projeto, ajudar pessoas, continuar fazendo meus exercícios físicos, cuidar do meu marido todos os dias. Também faço minhas orações porque acredito que a parte espiritual traz muita paz. E poder continuar em contato com as pessoas que eu amo. Isso faz uma diferença enorme na nossa vida emocional.”

Michele se considera muito exigente, e diz que o momento a fez pensar de maneira diferente. “Eu parei de me julgar e comecei a aceitar que tem coisas que eu não consigo mudar. Eu faço o meu melhor todos os dias. Sei que posso melhorar mais, mas eu sei que estou fazendo o meu melhor hoje”, conclui.

SERVIÇO

Informações e agendamentos: (43) 99625-5345, pelo Instagram (@psicouel.covid) ou pelo Facebook (Suporte Psicológico UEL – COVID-19).

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