Uma das incapacidades humanas é o controle objetivo do tempo. Seja pela percepção das horas passarem rapidamente durante momentos de lazer, pelo próprio amadurecimento do corpo e posterior envelhecimento, ou até mesmo pela seletividade de episódios da vida, os que são lembrados com mais precisão e outros que não. Uma característica, aliás, que tem efeito importante na condição humana: o esquecimento.

Já imaginou se o Orkut fosse reativado e todas as suas publicações, de mais de dez anos atrás, voltassem à tona? Se todas as opiniões exprimidas sobre um mundo bem diferente do qual vivemos atualmente, que ainda aprendia a lidar com a internet e com a exploração publicitária da vida privada, fossem vistas por pessoas que na época não o conheciam? Com todo o anacronismo e improbabilidade dessa reativação, os olhares de uns para os outros seriam diferentes?

O mesmo princípio pode ser aplicado para a vida pessoal, social, profissional ou para antecedências criminais. O que está no passado não fica no passado, conforme teorizou o historiador norte-americano David Lowenthal: “(ele) é produto do presente conforme as pessoas o manipulam para gerar efeitos desejados” e qualquer tipo de variação na conduta ou na identidade que a pessoa apresenta no presente momento pode ser usada por terceiros para atacá-la e não apenas fatos específicos considerados imorais frente à sociedade. É nesse contexto que se institui o direito ao esquecimento, um artifício que possibilita uma pessoa a não permitir que um fato ocorrido em um momento específico de sua vida, por mais que verídico, seja exposto em meios de comunicação e a cause sofrimento.

Imagem ilustrativa da imagem O passado que condena: as implicações do direito ao esquecimento
| Foto: Folha Arte

No Brasil, o direito ao esquecimento é uma consequência direta do direito à vida privada (relações contratuais, familiares, empresariais, etc.), estabelecido pela Constituição Federativa de 1988 (art. 5°, X) e pelo Código Civil (art. 21°), que pertencem ao campo da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88).

O Estudo publicado no artigo “Memória e contemporaneidade: as tecnologias da informação como construção histórica”, do doutor em Ciências Sociais Raimundo Donato do Prado Ribeiro, o esquecimento e a memória são naturalmente dependentes: “A lembrança e o esquecimento são componentes da memória, um não existe sem o outro, no processo de atualização do passado, quando evocado. É a memória que nos dá a sensação de pertencimento e existência”.

É seguro pensar, então, que o passado, por mais que esquecido em um primeiro momento, está armazenado na memória, seja ela biológica ou digital, para sempre? “A presença das novas tecnologias da informação não implica num mundo inteiramente novo. Pensamos um futuro que irá conviver e coexistir com temporalidades e historicidades distintas. Vestígios do passado sempre estão presentes”, categoriza o estudo.

O  mestre em Ciência Jurídica e pesquisador da dignidade da pessoa humana, Thiago Giazzi, ressalta que apesar do nome, o direito é aplicado sobre as formas de lembrança de um fato e não no esquecimento do fato em si
O mestre em Ciência Jurídica e pesquisador da dignidade da pessoa humana, Thiago Giazzi, ressalta que apesar do nome, o direito é aplicado sobre as formas de lembrança de um fato e não no esquecimento do fato em si | Foto: Arquivo Pessoal

Por conta dessa capilaridade do esquecer como parte da memória, o direito ao esquecimento pode ser identificado por outro nome: o direito de ser deixado em paz. “A gente no Brasil popularizou mais a expressão direito de esquecimento, mas lá fora é mais comum falar em direito de ser deixado em paz. Então ele não é desenhado para impedir as decisões ou cadastros judiciais, mas de vincular o contexto de personalidade com o fato antigo”., explica o mestre em Ciência Jurídica e pesquisador da dignidade da pessoa humana Thiago Giazzi. O pesquisador ressalta que apesar do nome, esse direito é aplicado sobre as formas de lembrança de um fato e não do esquecimento deste em si: “o direito de esquecimento protege uma dissociação entre a pessoa que é autor de um fato, a forma que vive, valores que conquistou, do próprio fato. Não necessariamente garante o esquecimento do fato, pois ele é história”.

Tão importante como o esquecimento, assim também é o direito de memória, que prevê a livre permissão de acesso e exposição de fatos de determinante relevância histórica à sociedade. Uma das polêmicas é como o direito de esquecimento não anulará o de memória ou vice-versa.

Giazzi explica que apesar de inerentes à proteção da honra, ambos os direitos não estão explicitamente regrados nas leis, portanto são normas-princípio, ou seja, dependem do julgamento de casos específicos. “É da própria técnica jurídica que as normas-princípio não sejam absolutas, admitindo que em determinados casos, uma norma-princípio entrando em conflito com outra, haja pelo julgador um exercício de afastar a aplicação de uma em detrimento de garantir a efetividade de outra”.

Liberdade de expressão e abuso de direito

É muito comum observar, principalmente em discussões na internet, o argumento “é a minha opinião” ou “sou livre para me expressar” sempre que um posicionamento é contestado. Inclusive é uma das questões de conflito centrais para o funcionamento do direito ao esquecimento: como suspender a veiculação de um fato danoso sem atingir a liberdade de expressão?

Para Giazzi, é necessário que se explique a natureza da liberdade de expressão e como pode funcionar a relação entre as duas coisas em um processo. “O direito de liberdade de expressão também é uma norma-princípio, não sendo absoluto. Uma vez realizada, ferindo-se direitos daquele criticado, dará jus às responsabilidades, como o ressarcimento por dano moral, por exemplo.”

“Nunca nem vi”

Apesar de surgir como um resguardo de informações de processos individuais na Justiça, o direito ao esquecimento se ampliou para outros campos. E foi na internet que o debate acerca do tema ficou mais acirrado. O meme “nunca nem vi”, embora possa ser o desejo de muitos, não é absoluto para quem está constantemente on-line. Como citado antes, o passado na internet pode realmente condenar e é comum encontrar pessoas que tenham postado algo e posteriormente tenham se arrependido.

Conforme categoriza Melina Ferracini de Moraes em sua dissertação ‘O direito ao esquecimento na internet no contexto das decisões judiciais no Brasil’, a internet provocou mudanças na forma como a privacidade funciona. “Se antes era possível separar a atuação do indivíduo no espaço público e no espaço privado, hoje, com a penetrabilidade da informação, a atuação em tais espaços se confunde, tornando-se impossível estabelecer uma proteção tradicional à privacidade”.

Um levantamento da Hootsuite, sistema norte-americano especializado em gestão de marcas na mídia social, de 2019, estimou que 4,3 bilhões de pessoas estão conectadas à internet em todo mundo e que, destas, 3,2 bilhões são usuários ativos de redes sociais. A adesão de tantas pessoas à postagem da vida privada na internet colabora para a construção de uma memória que Giazzi categoriza como permanente. “Com a memória biológica apenas, os fatos vinham maculados de falhas, buracos, alterações. Hoje com a tecnologia, os fatos acontecidos no mundo virtual possuem exatidão de relatórios, logs, prints, áudios, vídeos, representando com perfeição, sem nenhum esquecimento, o que aconteceu em outrora”.

Nesse sentido, o Direito precisou avançar sobre o campo digital. O termo “extimidade” foi importado da psicanálise do francês Jacques Lacan, que analisa a constituição do sujeito a partir da sua linguagem, e significa justamente o contrário de intimidade: lançar ao público algo de natureza privada. “Para os casos de informações da vida privada colocadas em fluxo de dados de internet, é importante averiguar se o sujeito afetado teve a vontade de disponibilizá-las e se a utilização das informações como extimidades alcança a finalidade esperada para a mesma”, complementa Giazzi.

Ainda, a internet apresenta uma série de dificuldades para a efetividade do direito ao esquecimento na rede. Uma declaração do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de 2012, caracteriza que “diferentemente das máquinas, o ser humano é criativo e sagaz, e em pouco tempo encontraria meios de burlar as restrições de busca”. De acordo com o manifesto, o direito ao esquecimento também é dificultado pela organização internacional de provedores da internet. “A medida também se torna inócua pelo fato de que eventual restrição não alcançaria os provedores de pesquisa localizados em outros países, através dos quais também é possível realizar as mesmas buscas, obtendo resultados semelhantes”.

Apesar destas dificuldades, Giazzi enxerga um avanço do Direito sobre internet para garantir não apenas o direito de esquecimento, mas o cumprimento da lei como um todo. “Quando o Direito trabalha com normatização da internet ele trabalha no aspecto de proteção dos sujeitos físicos, pelas normas comuns que sempre existiram, no aspecto do suporte tecnológico que é a área que mais tem sido desenvolvida na atualidade, e com as relações que começam e terminam no próprio mundo virtual”. Para sintetizar o funcionamento da aplicação da lei nas redes, ele conclui: “tudo tem normativa, a internet nunca foi terra de ninguém, ainda que os usuários não percebam isso sempre”.

Importância para a justiça e para as pessoas

O direito de esquecimento como uma forma de proteção individual gera também efeitos sobre a própria Justiça. O docente do curso de Direito da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e especialista em Direito e Processo Penal Diego Prezzi confirma a importância do passado para a conclusão de casos. “Processos com condenação com trânsito em julgado, processos sem condenação e investigações são utilizados pela Justiça Criminal em algumas situações. Portanto, o passado não fica no passado. Não quando se trata da prática penal.”

Thiago Giazzi complementa que o passado é usado pela Justiça para a resolução de casos posteriores como referência, sobretudo, de forma impessoal. “Existem razões que alcançam maior importância na garantia de uma ordem social e jurídica para permanecer públicas as decisões judiciais, e assim as condenações, do que uma proteção ao sigilo das condenações”. Segundo ele, da mesma forma que a sociedade segue o rumo da História, o Direito também se baseia no passado, em sua integridade, para concretizar suas decisões futuras. Nesse aspecto, o uso do passado pela Justiça se difere do uso do passado alheio por pessoas individuais.

Para o professor do curso de Direito da UEL e especialista em Direito e Processo Penal, Diego Prezzi, o passado não fica no passado, quando se trata da prática penal
Para o professor do curso de Direito da UEL e especialista em Direito e Processo Penal, Diego Prezzi, o passado não fica no passado, quando se trata da prática penal | Foto: Arquivo Pessoal

Prezzi explica de que forma a Justiça se apropria do passado: “Estes dados de antecedentes são usados para avaliar a necessidade de medidas cautelares, como a prisão preventiva, para avaliar ‘benefícios processuais’ e para dosimetria da pena. Também há seu uso em procedimentos relativos aos processos de competência do tribunal do júri”. Ainda conforme essa configuração, Prezzi enxerga de forma crítica o critério da seleção de casos. “Pessoalmente, enxergo algum problema nestas utilizações, pois a Justiça Criminal decide o caso a ela submetida”.

Conforme atestado pela Constituição Federal de 1988, o direito à privacidade e à honra são princípios básicos da Justiça. Giazzi confirma a importância do direito ao esquecimento como uma forma de garantia de que algumas pessoas possam ser cobradas por um acontecimento específico. Conforme ele, esse direito busca resolver uma questão de temporalidade que possa ser utilizada de má-fé e perpetuar a superação pessoal do fato em questão. “Não é incomum pensar em fatos de nossa própria vida que não nos trazem orgulho de ter realizado e por isso gostaríamos de esquecer. Os motivos são semelhantes a situações constrangedoras que são criadas por familiares relembrarem fatos da nossa infância ou adolescência nos jantares comemorativos.”

Apesar da diversidade de situações que podem se enquadrar no direito, mesmo que verídicas, estar em paz com o próprio passado e reputação também é um direito importante para a sociedade. “Não é incomum que um outro sujeito não mais o reconheça como a mesma pessoa que teria praticado aqueles fatos vexatórios, desejando o esquecimento para a proteção dos valores de personalidade que vive na atualidade”, conclui. Por mais que o passado não possa ser esquecido, ele pode não exercer uma função exclusiva de determinação do futuro pessoal.