Nas épocas de Copa do Mundo, é comum o país ser “pintado” de verde e amarelo. As cores da bandeira nacional ganham as ruas. Junto com o amarelo, o “verde-louro desta flâmula” é unanimidade. Está nos carros, fachadas, sacadas, janelas, antenas, objetos, decoração de lojas, comerciais de televisão e até na comida. Passada a euforia dos jogos, com conquistas ou eliminações, o “símbolo augusto da paz” costumava voltar para as gavetas e armários, amargando anos de recolhimento até a pátria “calçar as chuteiras” novamente. Exceto pela presença em solenidades, órgãos oficiais ou algum outro acontecimento pontual, o uso do “lindo pendão da esperança” era raro — um contraste com os Estados Unidos, por exemplo, onde o lábaro que eles ostentam, bem mais estrelado que o nosso, é constantemente visto por todos os lados o tempo todo. Mas, desde 2013, com os protestos das chamadas “Jornadas de Junho”, algo mudou.

Imagem ilustrativa da imagem O lábaro que ostentas disputado
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"Primeiro tivemos o vermelho, dos partidos de esquerda, e o preto, dos black blocs, nas ruas. Na sequência, vieram manifestantes contra a corrupção usando verde e amarelo, em alusão à uma causa ufanista", explica o professor de História Afonso Alves. Nos anos seguintes, a presença da bandeira nos protestos políticos se intensificou. “As manifestações contra Dilma Rousseff, então presidente, de esquerda, já trouxeram muitos participantes com a bandeira e isso foi aproximando o símbolo com a direita”, complementa Afonso.

Nas eleições de 2018, vários candidatos usaram o “pavilhão da justiça e do amor” em materiais de divulgação, mas a ligação com a campanha de Jair Bolsonaro ganhou mais destaque. “O uso dela se casa aí com um discurso dito moralizador e nacionalista, e os grupos de apoiadores passam a utilizar mais fortemente, assim como a camisa da seleção de futebol, que também era comum nos protestos”, relembra a cientista política Bruna Matias.

Com a atual crise política e manifestações de apoio ao presidente, repletas de bandeiras do Brasil, uma nova polêmica começou na internet: o símbolo pode ser associado a apenas um grupo? Como resposta, internautas de diferentes ideologias passaram a adotar a bandeira nacional nos perfis de redes sociais para contrapor o que chamam de “apropriação” do símbolo por grupos bolsonaristas. O movimento para, segundo eles, “ressignificar” a bandeira, foi abraçado por personalidades públicas, como o apresentador Zeca Camargo, integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), parlamentares e o youtuber Felipe Neto — um dos defensores mais incisivos da causa. “É hora de tirarmos o poder de uso político da bandeira do Brasil pela extrema direita”, tuitou Felipe. Há quem discorde. “A esquerda abandonou a bandeira nacional, adotou a cor vermelha e agora reclama?”, rebateu, também no Twitter, a empresária Helena Viana. E não é só no campo virtual que a disputa ocorre. Em maio, militantes de partidos de oposição fizeram um protesto contra o presidente na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e levaram bandeiras verde e amarelas, que dividiram espaço com o vermelho.

Apoiadores do governo Bolsonaro ajoelham em frente a uma versão gigante da Bandeira do Brasil, em Brasília - Junho de 2020
Apoiadores do governo Bolsonaro ajoelham em frente a uma versão gigante da Bandeira do Brasil, em Brasília - Junho de 2020 | Foto: Sergio Lima/ AFP

De acordo com o artigo 10 da Lei 5.700, de 1º de setembro de 1971, o uso da bandeira é permitido em “todas as manifestações do sentimento patriótico dos brasileiros, de caráter oficial ou particular”. O deputado federal Júnior Mano (PL-CE) chegou a propor, recentemente, um projeto de lei para proibir o uso da bandeira em protestos, mas desistiu da ideia. “Não há impedimento legal, mas passou-se a ter, entre os grupos contrários ao atual governo, um receio de ser identificado como governista se usasse algo com as cores verde e amarela em manifestações ou até casualmente, no dia a dia, assim como alguns cidadãos pró-governo já hostilizaram pessoas de vermelho em protestos de algumas capitais e refutam a cor. Então não acho que seja uma briga ideológica, mas sim ilógica, porque as cores e símbolos já existiam antes de todos eles e vão continuar existindo. Não deveriam ser propriedades nem de um lado, nem de outro”, opina a cientista política Bruna Matias. Para o professor de História Afonso Alves, o risco é cair em mais um “diversionismo” enquanto temos questões mais sérias a debater. “Claro que a bandeira é muito importante, mas temos uma pandemia matando milhares de pessoas, uma crise econômica fortíssima, uma tensão entre as instituições, e surge um movimento pensando na bandeira. Será que é prioridade?”, questiona. “Mas ela é dos brasileiros e se eles acham que é preciso ter essa discussão, são livres para isso”, complementa Afonso.

Movimento antirracista levanta a bandeira do Brasil em protesto a favor de medidas igualitárias, justiça ao racismo e contra o governo Bolsonaro na capital paulista em Junho 2020
Movimento antirracista levanta a bandeira do Brasil em protesto a favor de medidas igualitárias, justiça ao racismo e contra o governo Bolsonaro na capital paulista em Junho 2020 | Foto: Nelson Almeida

Entre os grupos contrários, o debate segue. “Usamos porque defendemos um país melhor. Será que esses que reclamam também lutam por isso ou só pensam nos próprios interesses?”, pergunta o analista de marketing Otávio Neto. “Essas pessoas usam um símbolo nacional com ações que nada representam o Brasil, como segregação e retrocessos”, rebate a arquiteta Márcia de Jesus. Já a dona de casa Margarida Fontes, que se diz sem lado político definido, prega a neutralidade também nesta refrega. “Somos todos filhos da mesma pátria, para que uma briga assim? Todos têm o direito de usar nossa bandeira. Com respeito à ela e aos outros cidadãos, tudo fica bem”, sugere.

Imagem ilustrativa da imagem O lábaro que ostentas disputado
| Foto: Sergio Lima/ AFP

Pelo visto, a confusão para demonstrar mais “afeto que se encerra em nosso peito juvenil” não tem data para terminar — algo provavelmente inimaginado por Francisco Braga e Olavo Bilac, autores do “Hino à Bandeira”, cujas estrofes foram citadas no decorrer da matéria. Muito menos pensado por Joaquim Osório Duque-Estrada, que escreveu o “Hino Nacional”, também com referências ao nosso estandarte, e também descritas aqui, ao longo destas linhas. Como diriam nos memes de Dráuzio Varella, só para voltar à internet: “saudades dos tempos de Copa do Mundo, não é, minha filha?”.

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