Projetos de lei que tramitam na Câmara estipula prazo para extinção da produção e circulação de dinheiro em espécie
Projetos de lei que tramitam na Câmara estipula prazo para extinção da produção e circulação de dinheiro em espécie | Foto: iStock

Duas horas de terror marcaram o fim de agosto em Araçatuba, no interior de São Paulo. Uma quadrilha fortemente armada atacou três agências bancárias e espalhou explosivos pela cidade. O grupo chegou durante a madrugada em 14 veículos, a maioria carros de luxo, e roubou outros oito de moradores durante a fuga. Automóveis também foram incendiados para fechar vias e atrapalhar a chegada da polícia.

Três pessoas morreram, sendo dois moradores e um dos suspeitos. Cinco pessoas ficaram feridas, entre elas um ciclista que teve os pés amputados por uma das bombas deixadas nas ruas. Para evitar mais incidentes, a prefeitura precisou suspender as aulas e o transporte público na cidade. Até a vacinação contra o coronavírus foi interrompida.

O crime repercutiu na internet e foi um dos mais comentados nas redes sociais. Segundo a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo), oito pessoas – entre elas o suspeito de financiar a ação – já foram presas. A investigação segue e outros envolvidos ainda são procurados, além do dinheiro levado.

Não foi a primeira vez que algo parecido aconteceu. Em abril, outra quadrilha cercou o centro de Criciúma, em Santa Catarina, para explodir e roubar um banco durante a noite. Assim como no interior paulista, o grupo provocou incêndios, bloqueou ruas e acessos à cidade, usou reféns como escudos e atirou várias vezes, causando pânico entre os moradores.

As madrugadas de medo também tornaram-se parte da rotina em diversas cidades menores do interior do Brasil. Em julho, uma agência bancária de Mariluz e outra de Goioerê, no Noroeste do Paraná, tiveram os caixas eletrônicos destruídos com o uso de explosivos. Meses antes, três agências bancárias de Cambará, no Norte Pioneiro, foram os alvos. Quitandinha, Floraí, Faxinal, São Carlos do Ivaí, Santa Amélia, Sertanópolis, Wenceslau Braz e Terra Rica foram algumas das outras cidades paranaenses vítimas dos ataques.

Chamados de “novo cangaço” – uma referência aos cangaceiros que aterrorizavam o Nordeste no início do século XX, como o bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião –, os ataques focam em pequenas cidades, de até 50 mil habitantes, devido ao número reduzido de forças policiais e poucas vias de acesso. “É um crime geralmente muito bem planejado, que envolve grande quantidade de pessoas e recursos. Como são ações mais rápidas e bem organizadas, fica difícil uma reação imediata da Polícia”, explica o analista criminal e especialista em segurança patrimonial Ricardo Fonseca.

“Além de um armamento poderoso, o estudo da rotina daquele lugar favorece o êxito dos bandidos, que se dividem em várias funções específicas durante o ataque, para serem rápidos e objetivos. Funciona como uma linha de produção e causam tensão e trauma nessas cidades, que geralmente são pequenas e pacatas”, complementa.

Como reação, os bancos têm investido em novas tecnologias antirroubo, incluindo cofres resistentes a explosões, tintas que mancham cédulas quando os equipamentos são danificados, câmeras que podem identificar alguém que entre na agência usando capuz, sirenes, luzes e até máquinas de fumaça, instaladas para atrapalhar a ação dos ladrões. Mesmo assim, o número de ataques segue alto.

Segundo a Febraban (Federação Brasileira de Bancos), 434 ocorrências utilizando explosivos contra bancos e caixas eletrônicos foram registradas em 2020. Em algumas cidades, os prejuízos causados por seguidos ataques acabam levando ao fechamento de agências, deixando moradores sem acesso a serviços financeiros. “É um transtorno grande, já que há pessoas mais idosas, por exemplo, que preferem sacar o dinheiro das aposentadorias e usá-lo no dia a dia, por ter pouca intimidade com cartões ou meios digitais. Cria-se aí a necessidade de deslocamento para cidades maiores e uma série de implicações até para o comércio desses municípios atingidos, que perdem vendas sem a circulação do dinheiro”, aponta a consultora financeira Rosângela Garcia.

Dados da Febraban mostram que, entre 2016 e 2021, cerca de 4 mil agências fecharam as portas no país. A estimativa é que 20% desse total tiveram como motivação a violência, que gera altos custos de reconstrução dos espaços. Com a concorrência das fintechs e a queda nas tarifas pagas pelos clientes, os bancos tradicionais precisaram rever o orçamento, optando por sair de locais mais inseguros.

Se por um lado há o esforço para aumentar a segurança das agências bancárias e evitar ataques, há quem queira abolir de vez o uso de dinheiro em espécie como uma das soluções para o problema. O Projeto de Lei Complementar 214/2020, do deputado federal Paulo Ramos (PDT-RJ), quer exigir que todos tenham conta bancária e as transações sejam registradas por meio do CPF ou CNPJ. Conforme a proposta, após a entrada em vigor, só poderiam existir moedas de 5, 10, 25 e 50 centavos e de R$ 1 e cédulas de R$ 2, R$ 5, R$ 10 e R$ 20. Passados 24 meses, a circulação de moedas e cédulas seria proibida.

“O dinheiro tem de ser virtual, evitando o acúmulo de fortunas com dinheiro em espécie, o comércio de drogas e o contrabando de mercadorias e armas, permitindo ainda maior controle sobre os recursos públicos e sobre a arrecadação de tributos”, argumenta o autor.

Já o Projeto de Lei 4068/2020, do deputado federal Reginaldo Lopes (PT/MG), também em tramitação na Câmara dos Deputados, estipula prazo para a extinção da produção, circulação e uso das notas em papel. Cédulas de valor superior a R$ 50 em até um ano após a aprovação da lei e cédulas abaixo de R$ 50, em até 5 anos. A partir daí, transações financeiras só seriam permitidas através de sistema digital.

O projeto aguarda parecer da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços da Câmara. “Quase todo dia um banco tem explosão de caixa eletrônico, supermercados sofrem assaltos, tem o crime da ‘saidinha’ de banco. A violência, em grande parte, seria eliminada sem dinheiro físico”, defende o deputado.

Como justificativa, o parlamentar aponta o aumento nas operações digitais no Brasil. De acordo com a Febraban, o uso de plataformas bancárias digitais passou de 52%, em 2016, para 67% no ano passado, enquanto os serviços de agências e outros espaços físicos caíram de 33% para 19% no mesmo período. Hoje, o mobile banking já é utilizado em 51% das operações.

Segundo Garcia, a pandemia acelerou o processo. “Muitas pessoas que não usavam aplicativos de bancos antes da pandemia foram forçadas a se adaptar. Agora estão utilizando e não voltam mais para o analógico, porque entenderam que é muito mais fácil e seguro do que ir até uma agência, do que carregar cédulas”, avalia a consultora.

A chegada do Pix, método de pagamentos instantâneos brasileiro, lançado no ano passado pelo BC (Banco Central), também contribuiu, pela sua facilidade de uso. Números divulgados em maio deste ano pelo BC mostram que havia 41,2 milhões de usuários da novidade em novembro. Em maio, já eram 93,6 milhões, com mais de 242 milhões de chaves cadastradas.

Os dados demonstram que 45% da população adulta do Brasil já usou o sistema em algum momento, com 1,547 bilhão de transações realizadas e uma movimentação financeira de R$ 1,109 trilhão. Ainda segundo a instituição, a quantidade supera o volume de TEDs, DOCs, cheques e boletos somados.

A novidade facilitou a vida da comerciante Marília de Carli, que vende salgados e bebidas pelas ruas de Curitiba. Para ela, a rapidez e a disponibilidade ajudam os pequenos negócios. “Comecei a usar em janeiro, porque muita gente me perguntava se eu aceitava Pix, que eu nem sabia o que era. Meu filho me ajudou a fazer e hoje as pessoas até preferem pagar com ele por nem sempre estarem com a carteira no bolso. O celular o povo leva pra cima e para baixo o tempo todo”, comemora Carli, que planeja descontinuar até o uso da máquina de cartões.

“O Pix é de graça, não tem taxa, então é mais vantajoso pra gente”, explica. Outro que ficou feliz com a novidade foi o encanador Duilio Marques, que passou a evitar calotes após a adoção do Pix. “Às vezes tinha a conversa do ‘posso pagar amanhã’, já tive muito cheque que voltou. Hoje eu falo que prefiro que pague com o Pix, já confirma na hora e resolve para todo mundo”, assinala.

Desigualdade é o maior obstáculo

Um avanço maior dos meios digitais em transações financeiras esbarra em outro obstáculo: a desigualdade. De acordo com levantamento do Instituto Locomotiva, mais de 45 milhões de pessoas vivem sem acesso a instituições financeiras no Brasil. Em 2019, as notas e moedas eram o principal meio de pagamento para 71% dos brasileiros — no caso das pessoas das classes D e E, isso cresce para 89%. Há ainda cerca de 60 milhões de pessoas com restrição de crédito e muitos sem acesso à internet.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, divulgada em abril de 2020, apontam que um em cada quatro brasileiros – 46 milhões de pessoas – estão offline no país. Em áreas rurais, o índice de brasileiros sem internet chega a 53,5%. É justamente o público que sofreu para acessar o Auxílio Emergencial durante a pandemia. Dados da Caixa Econômica Federal apontaram que cerca de 40% dos brasileiros que receberam a ajuda de R$ 600 no ano passado, não possuíam nenhuma conta bancária antes da crise sanitária.

Mas nem tudo são flores. Como no mundo cada avanço sempre pode ser usado para fazer o mal, o número de golpes utilizando o Pix também cresce. Casos de clones no WhatsApp, pedindo dinheiro a pessoas próximas, tornam-se cada vez mais comuns. Já a Polícia Civil de São Paulo registrou um crescimento no número de roubos de celulares e de sequestros-relâmpago após a implantação do Pix no Brasil. Criminosos antes especializados em outros segmentos enxergaram aí uma oportunidade, já que a tecnologia permite transferências de grandes quantidades de dinheiro num período curto de tempo.

O Banco Central diz que está atento e sempre estudando novas medidas de segurança. No entanto, afirma que “todas as operações com o Pix são 100% rastreáveis, o que permite a identificação das contas recebedoras de recursos produtos de golpe/crime, permitindo a ação mais incisiva da polícia e da Justiça, o que não acontece com saques em caixas eletrônicos, por exemplo”. O órgão revela ainda que “dados recentes mostram haver suspeita de fraude em apenas 0,001% das transações de Pix, fração considerada ínfima e constante ao longo do tempo”.

O analista criminal Ricardo Fonseca diz que o movimento era esperado. “Infelizmente, enquanto buscamos soluções para proteger a sociedade, os criminosos estão passos à frente em novas modalidades de crime. É uma corrida sem fim”, lamenta. E ele dá algumas dicas para se proteger. “Nas ruas, tome cuidado com o celular, não o deixe em exposição. No dia a dia, jamais acredite em pedidos de transferências vindas de pessoas conhecidas, mas com mensagens dizendo que ela está com um novo número. Na dúvida, ligue para a pessoa. Quanto ao Pix, configure o limite de transferências, evite utilizar a senha do banco em outros aplicativos, não anote senhas dentro do celular e tome cuidado ao clicar em links suspeitos ou compartilhar códigos recebidos por SMS. E sempre comunique o banco o quanto antes em caso de fraude ou roubo”, ensina.

Sobre um mundo sem dinheiro em espécie, os entrevistados são céticos: é muito difícil. “A gente usa cada vez menos, mas há situações em que precisamos ter dinheiro à mão. E não dá para esquecer que parte do Brasil vive em uma bolha, com acesso aos meios digitais. A realidade em muitos lugares não é essa nossa, portanto não dá para segregar ainda mais”, avalia Fonseca.

A comerciante Marília de Carli concorda. “Por mim preferia não usar, mas para quem trabalha na rua, não tem como ficar sem as cédulas”, opina. Para o encanador Duilio Marques, o dinheiro em espécie traz segurança. “Em momentos de incerteza, ter dinheiro na mão é mais garantido. Se fecham os bancos, se você não consegue usar o cartão, como vai pagar as contas? Então às vezes a gente não confia muito nessa coisa digital”, admite.

Enquanto o debate se aprofunda, em outros lugares o futuro já começou. El Salvador foi o primeiro país do mundo a anunciar o bitcoin como moeda oficial. Apesar da novidade, uma pesquisa da UCA (Universidade Centro-Americana) e do jornal La Prensa Gráfica mostrou que 82,8% da população têm pouca ou nenhuma confiança no bitcoin, enquanto 95,9% consideram que o seu uso deve ser voluntário. Há 20 anos, o país da América Central tem o dólar como moeda principal.

Na Suécia, alguns bancos já pararam de usar dinheiro em espécie e o país estuda acabar com o papel moeda até 2030. O mesmo movimento ocorre na China, que em 2016 já registrava 80% das movimentações por meios digitais. Na Noruega, apenas 4% das transações ainda são com dinheiro físico.

Por aqui, o Banco Central segue com o projeto do “real digital”, que será lançado no ano que vem em um ambiente de testes e, em 2024, deve estar disponível para todos os brasileiros. O real digital será um “token”, uma moeda inteligente. A intenção do BC é que ela sirva para estimular novos modelos de negócio em uma economia digital, facilitando transações e a implantação dos chamados “smart contracts”, contratos inteligentes.

“Todos esses avanços são tendências e vamos ver muita coisa nova nos próximos anos, com a migração de tecnologias ocorrendo aos poucos. Mas dinheiro físico acredito que sempre vai existir. É como o rádio, que sobreviveu à televisão. Todos diziam que ele ia acabar e ele está aí até hoje. Com o dinheiro físico vai ser a mesma coisa”, prevê a consultora financeira Rosângela Garcia.

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