Indústria do porco completa 100 anos no Paraná
Dos primeiros frigoríficos ao cooperativismo e melhoramento genético, cadeia fabril impulsiona desenvolvimento no interior do Estado
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 01 de janeiro de 2025
Dos primeiros frigoríficos ao cooperativismo e melhoramento genético, cadeia fabril impulsiona desenvolvimento no interior do Estado
Celso Felizardo

Nos tempos de 'western brasileiro', com seus sertões bravios, as comitivas de porcadeiros desafiavam todas as adversidades. Os rebanhos de suínos de paulistas e mineiros que se estabeleceram, a partir de 1843, no que é hoje o Norte do Paraná, eram direcionados a abastecer o mercado de São Paulo. As longas viagens se encurtaram quando, nos anos 1920, começa a funcionar o frigorífico Matarazzo em Jaguariaíva, nos Campos Gerais.
Desde o início dos trabalhos na fábrica, marco do pioneirismo da industrialização do interior do Paraná, muitas transformações provocaram uma verdadeira revolução na atividade. Na segunda metade do século 20, o regime extensivo dá lugar ao confinamento, e o associativismo e a integração levam o protagonismo para o Oeste do Estado. A organização da cadeia e a padronização da proteína resultam em um salto de qualidade que hoje reflete em geração de renda, empregos e desenvolvimento.
Para contar essa história, a FOLHA foi até os extremos do Paraná, em Jaguariaíva, quase na divisa leste com São Paulo; e Toledo, no Oeste paranaense. Se o cenário consolidado mostra a força da agrondústria paranaense, o futuro se impõe com oportunidades e desafios. Para solucionar o impacto ambiental da suinocultura, a solução encontrada em Toledo foi transformar resíduos em energia por meio do biogás.
Na reta final de nossa viagem de um século pela história da indústria da suinocultura, o melhoramento genético dá as direções para os caminhos que a atividade deve percorrer nos próximos anos. Uma fazenda em Jaguariaíva é referência no assunto. Confira toda essa história em detalhes a seguir.

Primórdios
O interior do Paraná era praticamente tudo mato quando Francesco Matarazzo, o maior industrial brasileiro de todos os tempos, no início dos anos 20 do século passado, resolve construir um frigorífico em Jaguariaíva, nos Campos Gerais. A grande produção de suínos existente no estado foi o grande chamariz para o negócio. O conde italiano, como era conhecido, que chegou a ter a quinta maior fortuna do mundo, ampliava assim o seu império, ‘sucedendo’ o de Dom Pedro II, o qual ele viu ruir em 15 de novembro de 1889, oito anos após sua chegada ao Brasil.
Para iniciar os negócios e, assim, “fazer a América”, Matarazzo trouxe consigo um carregamento de duas toneladas de banha de porco. A carga, porém, naufragou no Atlântico. Com base no estado de São Paulo, o empresário começou a empreender pela produção de farinha de trigo, que até então era totalmente importada no país. Nos anos seguintes, ampliou a área de atuação para um leque que ia desde alimentícios a produtos químicos. Mas a banha de porco nunca lhe saiu da cabeça.
Durante uma viagem de trem com destino à Antonina, no litoral paranaense, Matarazzo força uma parada da composição em frente a uma queda d’água em Jaguariaíva. Segundo historiadores, o faro aguçado para os negócios lhe indicou que a paragem, próxima à transição entre primeiro e segundo planaltos paranaenses, era ideal para abrigar um frigorífico e colocá-lo na concorrência com as multinacionais Swift e Armour, instaladas no país havia pouco tempo.

Enxergou ali a combinação perfeita: matéria-prima em abundância (porcos), água e a recém-construída linha férrea São Paulo-Rio Grande do Sul, para escoar a produção. Com a unidade em funcionamento pleno, a partir de 1924, a região se tornou a Meca dos porcadeiros de todo o Estado. Os leitões criados em regime extensionista, chegavam em gaiolas, nos trens, ou em verdadeiras comitivas. Os porcos do Norte Pioneiro se diferenciavam dos trazidos do Sudoeste pela marcação: enquanto os primeiros eram marcados no lombo, com ferro quente, os que viam de mais longe possuíam a identificação na orelha.
A abertura da unidade industrial em Jaguariaíva reacendeu as esperanças dos locais para a chegada do tão sonhado progresso, que custava em se tornar realidade, fosse pela péssima condições das estradas, fosse pela demora em se concluir as conexões do ramal ferroviário. A criação de porco, apesar de numerosa, demorava a dar retorno financeiro. Compradores do interior de São Paulo estabeleciam o preço que queriam, muito abaixo do justo.
Segundo o historiador Ruy Christovam Wachowski, em sua obra Norte Velho, Norte Pioneiro, produtores exclusivos do conde espalharam-se pela região. “Siqueira Campos, Joaquim Távora, Curiúva, Ibaiti, Ribeirão do Pinhal, Pinhalão etc. Em uma segunda leva, suínos de Maringá, Campo Mourão, Apucarana e Londrina, também eram conduzidos para o frigorífico de Jaguariaíva”. “Os porcos comprados dos safristas em Santo Antônio da Platina iam para Jaguariaíva de trem, embarcados em vagões gaiolas de dois andares. Quando por qualquer motivo faltavam esses vagões, os porcos seguiam de caminhão”, detalha.
A capacidade de abate diário do frigorífico em Jaguariaíva era de mil suínos por dia. Por duas décadas, desde o início dos anos 1920, a indústria do porco foi a principal referência econômica da região. A nova atividade mudava também os hábitos e costumes da localidade, que experimentava uma amostra da vanguarda industrial que começava a ganhar força no Brasil no início do século 20, a exemplo do que havia ocorrido nos países desenvolvidos dois séculos antes.

Estrangeiros chegavam para trabalhar nas câmaras de resfriamento, porque segundo os locais, eles “aguentavam o frio”, conforme conta a pesquisadora Ângela Brandão em seu livro ‘Memórias: Frigorífico das Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo em Jaguariaíva’. A indústria mexia com o imaginário dos moradores, ao ser vista toda iluminada em meio à vegetação.
A fábrica produzia a banha de porco, muito utilizada na cozinha na época, mas também fazia produtos refinados, que eram transportados nos vagões brancos, refrigerados, para as capitais e até para o exterior. A planta industrial empregava de 600 a 900 trabalhadores diretos, mas o número chegou a passar de mil nas temporadas mais fortes, registra Brandão. Tudo era produzido ali: lata, rótulos, caixaria. Até os ossos eram aproveitados; viraram botões.
Segundo registrou o historiador José Axt, a economia de Jaguariaíva na década de 1920 estava voltada à pecuária, com a parte baixa da cidade em pleno desenvolvimento devido à estação ferroviária. A parte alta da cidade estava praticamente desabitada. O salto populacional de Jaguariaíva passou de 3.800 para 15.965 habitantes de acordo com as estimativas do IBGE na década de 1920, número impressionante para a época.
Declínio
A história começa a mudar nos anos 1940, com a abertura da Estrada do Cerne, que desviou a marcha do progresso para oeste, nas proximidades do Rio Tibagi. Já eram tempos de colonização do Norte Novo.
A crise se agravou com uma grande seca em 1944, que dizimou as lavouras de milho, principal alimento para a engorda dos suínos. Wachowski conta que um safrista colheu apenas 80 cargueiros de 200 alqueires de milho plantado. No ano seguinte, quando o mundo celebrava aliviado o fim da Segunda Guerra Mundial, o Norte Pioneiro amargava a temida peste suína. “De 2 mil porcos, aproveitei apenas 34”, contou o produtor ao historiador.
Na imagem acima, o relatório das S. A. Indústrias Reunidas F. Matarazzo, publicado em 20 de abril de 1947 no jornal O Estado de São Paulo, reporta ainda as consequências da peste suína no ano 1947.
O sistema de safra ainda continuou incipiente, “no fundo do sertão”, sem o mesmo vigor de antes. O frigorífico Matarazzo, uma das 200 plantas industriais do conde em todo o país, resistiu por um tempo, mas minguou até que, em 1964, seus herdeiros a fecharam definitivamente, dando lugar a uma unidade têxtil, que resistiu até os anos 1980.
Legado
Apesar do encerramento das atividades, é consenso em Jaguariaíva que a indústria do conde Matarazzo deixou seu legado. Hoje, o prédio funciona como uma incubadora de pequenas fábricas. Wilson Junior é proprietário de uma empresa de peças de metal que atende a indústria madeireira. “A estrutura aqui é muito boa. Chegamos a montar grandes peças transportadas em três caminhões”, conta. A produção atende o mercado nacional, além de demandas pontuais do exterior.
O know-how industrial se transferiu para o ramo da indústria madeireira. Jaguariaíva, hoje com 35 mil habitantes, se consolidou como um dos principais pólos madeireiros do Estado. O município que abriga a B.O Paper, antiga Pisa, maior produtora de papel imprensa da América Latina, se destaca na 11ª posição nacional na produção de tora de pinus para papel e celulose, com 321 mil metros cúbicos.
Ao lado do complexo industrial Matarazzo funciona uma unidade do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial). O serviço é um dos principais responsáveis por fomentar o desenvolvimento da região, por meio de capacitação de mão de obra especializada.
Além da expertise industrial, também há o legado histórico cultural. O palacete do conde Matarazzo, construído estrategicamente em uma região próxima à fábrica, hoje abriga o Museu Histórico Municipal Conde Francisco Matarazzo. Lá o visitante pode conhecer mais sobre um dos principais expoentes da história da industrialização do interior do Estado do Paraná.
A reportagem foi originalmente publicada em 09 de agosto de 2024 e pode ser lida em versão especial e completa aqui.

