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| Foto: Eduardo Matysiak/Futura Press/Folhapress

Desânimo e resignação. É com esses sentimentos que Osvaldo Ananias, de 44 anos, contempla com tristeza a fachada da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba. Nascido na capital paranaense, traz na memória os passeios com o pai, no tempo em que era criança, pela Praça Santos Andrade, espaço que abriga a instituição de ensino desde 1912. Com os olhos marejados, conta que seu desejo era estudar ali, consumando um sonho que o pai não conseguiu realizar. “Meus avós eram pobres, ele precisou trabalhar desde cedo, e mal deu para estudar. Eu tinha uns 6, 7 anos, a gente passava em frente à Universidade e ele dizia que eu ia estudar aqui para ser o doutor que ele não pôde ser”, relembra.

Órfão cinco anos depois, ao invés do sonho, precisou seguir a mesma sina paterna, praticamente largando os estudos e procurando trabalho. “Primeiro um bico aqui, outro ali. Dava para ajudar minha mãe, que lavava e passava pra fora, e colocar comida na mesa”, continua. Em um restaurante do bairro em que vivia, estreou como garçom logo que a mãe também se foi. Filho único, passou então a viver sozinho, em uma pequena casa alugada, e trabalhar em bares e restaurantes da cidade. “Dava pra me virar, uma vida razoável, mas aí veio a pandemia. Como não tinha carteira assinada, rodei”, lamenta.

Com restaurantes fechados, a categoria foi uma das mais afetadas pela pandemia. Segundo a Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), desde o início da pandemia, mais de 1 milhão de trabalhadores do segmento perderam seus empregos no Brasil — parte desse número devido ao fechamento dos estabelecimentos. “Mais de 30% dos bares e restaurantes, o equivalente a 300 mil negócios, fecharam as portas em 2020. O setor foi completamente destruído, de Norte a Sul do país”, lamenta o presidente da entidade, Paulo Solmucci.

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| Foto: Isaac Fontana/FramePhoto/Folhapress

Sem conseguir o auxílio emergencial do governo federal e sem trabalho, as contas de Ananias, uma das vítimas das demissões do setor, foram se acumulando. Em setembro, precisou deixar o imóvel em que morava. “Vendi as coisinhas que tinha, consegui um dinheirinho, mas com as coisas no preço que estão, não durou muito”, explica. Passou por três pensões até, no último mês de abril, começar a viver nas ruas. O pequeno colchão, instalado em uma marquise ao lado da praça que, no passado, significava esperança de um futuro melhor, é agora a materialização da tragédia social que assolou o país. “Os dias frios são horríveis, é quando mais dói. É um sofrimento que não sei explicar. Não é só perder o teto, é perder a dignidade”, desabafa.

Situações como a do garçom se multiplicam pela capital. O número de pessoas abrigadas pela FAS (Fundação de Ação Social) de Curitiba saltou 43% no ano passado, em relação a 2019. A Prefeitura de Curitiba estima que sejam mais de 2,7 mil pessoas vivendo nas ruas da cidade, de acordo com dados do CadÚnico (Cadastro Único Para Programas Sociais) do Ministério do Desenvolvimento Social. Mas, entre os voluntários que atendem essa população, calcula-se que o número pode ser até três vezes maior. “Algo que chama a atenção é que hoje há famílias inteiras dormindo em pontos de ônibus, bancos de praças, embaixo de viadutos, coisa que não se via antes da pandemia. É de cortar o coração”, aponta o voluntário do projeto “Mãos Invisíveis”, José Matos. Pelo Brasil afora, o drama se repete. Pesquisa realizada pela Prefeitura do Rio de Janeiro mostra que 31% das pessoas vivendo nas ruas por lá, estão desalojadas há menos de um ano, sendo 64% por perda de trabalho, moradia ou renda. Do total, 42,8% afirmaram que, se tivessem um emprego, sairiam das ruas. Já números do cadastro de serviços do SUS (Sistema Único de Saúde) mostram que houve um aumento de 35% de mulheres em situação de rua.

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| Foto: Isaac Fontana/FramePhoto/Folhapress

É o caso de Ivonete Aguiar, de 54 anos, que vive, segundo ela, “de praça em praça”, desde janeiro. Ela e o marido foram despejados da casa em que viviam tempos depois de os dois perderem os empregos. Diarista, foi dispensada logo que a pandemia começou. Auxiliar de serviços gerais, o marido conseguiu se segurar até setembro, quando foi demitido. “Fomos comprando menos comida, atrasando as contas que dava. Mas quando meu esposo ganhou a conta, não teve mais jeito. Perdemos a casa, aí estamos na rua. Tenho fé que logo isso passe, é muito triste”, lamenta.

Referência no cuidado e apoio à essa população, o padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, lamenta a explosão de casos. “Antes da pandemia, cerca de 4 mil pessoas passavam por um dos nossos centros de acolhimento a cada mês. Esse ano o número dobrou”, calcula. Recentemente, o religioso foi empurrado para dentro de uma polêmica da deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), que publicou em uma rede social que o padre e seus voluntários “ajudariam se convencessem seus assistidos a irem para abrigos”. Segundo a deputada, “a distribuição de alimentos na Cracolândia ajuda o crime”. A mensagem veio após uma reportagem denunciar que a Polícia Militar de São Paulo teria tentado impedir a distribuição de comida na região.

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O religioso preferiu não polemizar e comentou que o objetivo das ações não é distribuir comida, mas defender a vida. “E a alimentação é uma dimensão fundamental da vida. A esses irmãos sobra fome, necessidade e dor. Nossa acolhida é o que vai gerar uma mudança”, observa o padre, que convidou a deputada a conhecer o trabalho realizado e defendeu um aprofundamento do debate sobre a questão. Paschoal também afirmou que “o tema precisa ser debatido com honestidade”. Criticada nas redes, a mensagem da deputada teve um lado positivo: o número de pessoas que passou a procurar a Paróquia de São Miguel Arcanjo, onde Lancellotti é pároco, para fazer doações, cresceu cerca de 10%.

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“Era uma população totalmente esquecida. Agora, com o crescimento que salta aos olhos, em todas as grandes cidades, talvez seja o momento certo de se encarar o problema com a seriedade que a gravidade sempre exigiu, mas era ignorada. São pessoas que perderam a dignidade, que precisam de oportunidades. A sociedade precisa deixar de fingir que não é responsável por isso”, avalia a socióloga Rosa Sanches.

Enquanto uma ajuda concreta não vem, pessoas como Ananias sobrevivem da solidariedade e da esperança que, tal qual o samba de Nelson Sargento, “agoniza, mas não morre”. “Aqui embaixo dessa marquise dormem mais oito, dez pessoas, dependendo do dia. Conseguimos comida de doações, mas tenho fé que logo consigo voltar a trabalhar. Meu objetivo agora é voltar a ter um emprego, um lugar para morar e tentar ajudar outras pessoas que estão nessa situação”, planeja, sem abandonar o sonho de voltar a estudar e ainda ser um universitário. “Nem que seja daqui 10, 20 anos, essa praça ainda vai ser onde eu vou me tornar o ‘doutor’ que meu pai queria que eu fosse. De algum lugar, ele ainda vai sentir orgulho de mim”, projeta, confiante e emocionado.

Informalidade e fome

Desemprego e inflação derrubam poder de compra das famílias, aumentando o número de pessoas em situação de extrema pobreza

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Na mesma esquina onde pessoas em situação de rua disputam espaço embaixo de uma marquise, no centro de Curitiba, o desempregado Afonso Diógenes tenta sobreviver vendendo balas. Sob o sol forte da hora do almoço, é preciso administrar os segundos entre o fechar e abrir do sinal e a corrida para colocar e tirar os pacotes de bala sobre os retrovisores dos carros. Nas contas dele, a cada 20 tentativas, um motorista fica com os doces. “É cansativo e tem que ter paciência, mas dá para tirar uns trocados. Os carros mais simples são os que mais compram. Os chiques nem abrem o vidro”, revela o mecânico, que perdeu o emprego após a oficina em que trabalhava havia cinco anos fechar as portas durante a pandemia.

A uma quadra dali, outra desempregada tenta a sorte. Com um cartaz nas mãos, Edinéia de Souza tenta apelar para a solidariedade de quem passa por um dos mais movimentados cruzamentos da capital. “Tenho três filhos, que estão com a minha sogra. Meu marido está sem serviço desde abril do ano passado, consegue alguns bicos de vez em quando, mas é difícil comprar comida para cinco pessoas. Então venho aqui tentar alguma ajuda”, explica, lamentando o insucesso colhido em grande parte do dia. “Estou desde às 7h e juntando as moedas, dá pouco mais de R$ 5”, calcula, no momento em que o relógio marca 13h.

As situações de Diógenes e Souza confirmam um dado revelado no ano passado pelo Idis (Instituto para o Desenvolvimento e do Investimento Social). Uma pesquisa da entidade apontou que os pobres doam, proporcionalmente, três vezes mais que os ricos no Brasil e que os brasileiros não são muito ativos no cotidiano, agindo mais em situações de emergências, como em tragédias naturais. No auge da pandemia, no final do primeiro semestre do ano passado, iniciativas de solidariedade alcançaram o pico no país, mas logo perderam força. Em 2020, a ONG Ação da Cidadania arrecadou o suficiente para 10 mil toneladas de alimentos que apoiaram quase quatro milhões de brasileiros e brasileiras em todo o país. Agora, a situação financeira também causa impacto nas doações. De acordo com a entidade, antes era possível distribuir cerca de 80 mil cestas básicas por mês, número que atualmente caiu para 8 mil cestas por mês.

As doações caem e o desemprego dispara. A taxa do trimestre encerrado em maio, divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ficou em 14,6%, o que representa um contingente de 14,8 milhões de pessoas buscando por uma oportunidade no mercado de trabalho. Segundo o instituto, esta foi a segunda maior taxa de desemprego da série histórica, iniciada em 2012. A taxa recorde, de 14,7%, foi registrada nos dois trimestres imediatamente anteriores. Os dados integram a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua). Os preços dos alimentos também não param de crescer, limitando o poder de compra do brasileiro. Em um ano, o quilo do arroz subiu quase 70%, o feijão preto, 51%, a batata, 47%, a carne, quase 35%, e leite, 20%. Já o óleo de soja teve alta de 87%, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). E tem ainda o aumento do gás, o combustível do fogão: 21%.

“É uma mistura explosiva, com inflação e desemprego em alta, poder de compra das famílias em queda. E o cenário ainda é pessimista, já que a crise hídrica e outros fatores climáticos, como as geadas que atingiram o país, impactaram na produção de alimentos, que devem subir mais. O aumento nos combustíveis também impacta em toda a cadeia produtiva. Se o governo não olhar com atenção para esse cenário, a situação das famílias pode se agravar ainda mais”, aponta o economista Celso Resende.

Segundo dados do CadÚnico (Cadastro Único Para Programas Sociais) do Ministério do Desenvolvimento Social, o número de pessoas em situação de extrema pobreza teve um crescimento de 5,8% desde o início da pandemia no Brasil. A desigualdade entre regiões também é evidente. Em diversos estados do Nordeste, o número de brasileiros nessa situação, em março de 2021, ultrapassou 12% da população local, chegando a quase 15% no Piauí e a mais de 13% na Paraíba. Já no Sul, esse percentual era próximo de 3% no Paraná e de menos de 2% em Santa Catarina. E o cenário ruim pode ser ainda pior, já que muitas pessoas em situação de pobreza extrema sequer fazem parte do cadastro, por não terem acesso à rede de proteção social, como é o caso de muitos moradores de rua.

“É um problema humanitário. Pessoas que tinham uma vida simples, de repente perdem tudo por uma grave crise econômica, até certo ponto negligenciada pelo governo. As políticas públicas precisam olhar para esse contingente, que hoje nos assusta e pode aumentar. Hoje há famílias inteiras nas ruas. Que futuro nosso país reserva para essas crianças? O ataque à democracia acontece nesse caso também, quando negamos a essas famílias os direitos básicos descritos em nossa Constituição, de educação, saúde, alimentação, trabalho e moradia. A classe política e toda a sociedade precisam se movimentar, já que todos perdem com um cenário assim”, destaca a socióloga Rosa Sanches.

Nas esquinas, Afonso Diógenes e Edinéia de Souza sonham com, pelo menos, um fim de ano melhor. “Fico sempre na esperança de voltar a trabalhar. Um colega que trabalhou na oficina comigo conseguiu serviço mês passado e falou de mim por lá. Se o movimento aumentar, podem me chamar. Queria pelo menos passar um Natal melhor”, espera Diógenes. Souza também tem fé em dias melhores. “É rezar para aparecer um rumo. Força para trabalhar a gente tem, tá faltando é serviço. Quando a gente pensa em desanimar, lembra dos filhos. Eles dão força pra gente”, conta a desempregada.

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