No último mês de julho, o novo ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto Franco França, fazia uma das primeiras visitas oficiais a um país. O destino escolhido para a viagem de três dias foi Portugal. Da agenda de compromissos pouco se sabe, afinal, o que ficou marcado para sempre foi o vexame passado pelo chanceler, quando o seu homólogo português informou, com entusiasmo, que o país já havia escolhido um embaixador para cuidar, pelo lado lusitano, das atividades alusivas à comemoração do bicentenário da Independência do Brasil, em 2022.

Imagem ilustrativa da imagem Esquecimento do governo do Bicentenário da Independência vira 'piada de brasileiro' em Portugal

O susto da comitiva brasileira escancarou que todos foram pegos de surpresa: o Brasil, apesar de ser o país que organizará as comemorações, havia tomado apenas a iniciativa de editar um decreto criando a chamada “Comissão Interministerial Brasil 200 Anos”. E só. A notícia gerou um clima de “barata-voa” no Itamaraty, que só assim correu para criar e nomear os servidores que vão integrar o grupo de trabalho organizador das atividades. Mas a repercussão negativa já havia se espalhado. “O esquecimento não causa surpresa alguma, vindo de um governo que, em geral, não preza por organização e planejamento das coisas. É surreal que Portugal esteja mais animado para as comemorações do que o país que se tornou independente”, ironiza a professora e socióloga Rosa Sanches.

Até apoiadores do governo criticaram a morosidade e indiferença do país em relação ao tema. Diretor do documentário “O jardim das aflições”, sobre o guru bolsonarista Olavo de Carvalho, o cineasta Josias Teófilo cobrou o Secretário Especial da Cultura, Mário Frias, e o secretário de Fomento e Incentivo da Secretaria Especial da Cultura, André Porciuncula, pela ausência de preparativos para as celebrações. “Dizem que os recursos são escassos, mas dinheiro para pagar o salário dele tem, né? Já tinha que ter filme, ópera, concerto e edital na praça. Bolsonaro foi eleito para combater o socialismo internacionalista. Aí vem o bicentenário da independência, a data mais importante dos últimos anos para o Brasil, e eles não fazem nada? Não tenho palavras para expressar a vergonha que sinto”, disparou o cineasta nas redes sociais.

Diante da vergonha e do fogo amigo, Frias anunciou, no início dessa semana, o lançamento de um edital que vai selecionar projetos audiovisuais para a data. “A Cultura acaba de lançar um edital de 30 milhões de reais, inteiramente voltado para os 200 anos da Independência do Brasil”, informou o secretário, no Twitter. Aproximadamente 20 produções, que podem ser documentário, ficção ou animação, curta ou longa metragem, vão ser selecionadas. Segundo ele, o objetivo é resgatar a memória “de todos os grandes heróis da nossa Independência”. Frias pontuou ainda que serão anunciados editais “específicos para a produção regional” e voltados a “novos produtores” para “promover a nacionalização de nossa cultura, a descentralização dos recursos do Fundo Nacional da Cultura, além de incentivar empresas”. Os projetos serão selecionados por uma comissão formada por servidores da Ancine (Agência Nacional do Cinema) e da Secretaria Especial da Cultura, e também por profissionais do setor audiovisual.

O comportamento atual do Brasil contrasta com as comemorações anteriores. Na passagem dos 50 anos da Independência, em 1872, os resultados do 1º Censo Nacional foram divulgados com empolgação, em uma tentativa de apresentar como estava o país, cinco décadas após a Independência. Já as comemorações do Centenário e dos 150 anos, foram organizadas com antecedência e grande atenção pelo governo da República, além de contarem com uma ampla participação de estados e municípios. Comissões Nacionais e Estaduais foram organizadas e a programação foi grandiosa, com a realização de atividades cívicas, esportivas, culturais, inauguração de monumentos e realizações de exposições etc.

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A do 1º Centenário da Independência foi aberta bem antes, em 1908, com a “Exposição Nacional da Abertura dos Portos”. Ocorrida no Rio de Janeiro, fez sucesso e é considerada um dos elementos que incentivaram a organização da “Exposição Nacional do Centenário”, aberta em 7 de setembro de 1922 e encerrada em julho do ano seguinte, trazendo um inventário dos 100 anos do país. Apresentando o progresso do Brasil desde a chegada da família real, ela desencadeou outra exposição, desta vez internacional, para comemorar o grito do Ipiranga e a realização da Independência. Assim como em 1908, a exposição serviu como vitrine do progresso nacional. Já o sesquicentenário, em 1972, foi usado pela ditadura militar como palco para autopromoção, em uma tentativa de se legitimar diante da população e exaltar o militarismo perante a sociedade.

“O governo brasileiro dá vexame ao esquecer a data, já que a obrigação de organizar é dele, mas a indiferença é geral, de toda a população. Como pensar em festejar com tantos problemas crônicos que se arrastam desde os 150 anos, e que foram agravados com a pandemia. É uma soma de desconhecimento com desencanto”, avalia Sanches. De fato, em 2008, quando se lembrou a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, fato apontado como início do processo de Independência do Brasil, eventos acadêmicos foram organizados em todo o país, além de documentários, séries televisivas, exposições e publicação de livros de divulgação. Agora, o mesmo empenho não se repete.

“Acredito que, pelo contexto em que vivemos, de crise sanitária, de polarização política, os festejos sejam impactados e podem gerar mais divisão no país. O governo provavelmente vai usar a data para atos ufanistas, como o questionável desfile de tanques fumacentos em frente ao Planalto, nesta semana, o que vai acirrar a polarização. Mas a data pode ser usada pela sociedade para pensarmos nos próximos 50 anos, planejar que Brasil queremos em 2072”, sugere a socióloga. Depois do péssimo começo, com o incidente diplomático em terras lusas, resta torcer para que o vexame brasileiro não vire outro motivo de piada, tanto aqui, quanto lá.

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