As disputas nas Olimpíadas de Tóquio estão a pleno vapor. Embora com apenas uma medalha de ouro e algumas decepções, por enquanto, há um “esporte” não olímpico em que o país se destaca: a produção de memes. A origem da palavra “meme” vem do grego e significa “imitação”. Ele se caracteriza por qualquer montagem com frase, imagem, gif, vídeo, música, personalidade, expressão ou outro tipo de elemento que rende um grande volume de interações e compartilhamentos na internet, em geral ironizando ou transformando algo em piada – inclusive vitórias ou derrotas olímpicas, o tema do momento. Em 2018, até uma “guerra” de memes contra Portugal foi “vencida” pelos brasileiros.

Imagem ilustrativa da imagem Abismo digital - No país que se destaca por cultura digital, há quem nem saiba o que é a internet
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Medalhas também para a força dos brasileiros nas lives, que dominaram a internet durante a pandemia. No ano passado, o país liderou o ranking mundial de picos de audiência em shows e outras transmissões do YouTube, plataforma em que os artistas daqui ocuparam quatro das cinco primeiras posições. Museus se reinventaram e criaram exposições virtuais, mantendo a produção cultural ativa durante o isolamento. E até o teatro entrou na onda, aproveitando a tecnologia para reunir atores, cada um em sua casa, e oferecer peças inéditas para o público.

Também destaque no pódio, as inovações digitais capitaneadas por aqui levaram o Centro de Inovação da Visa, com sede em Miami, nos Estados Unidos, a divulgar em 2019 um relatório que examinou as empresas mais inovadoras da América Latina e Caribe na área de pagamentos e serviços financeiros. O Brasil foi o grande vencedor, considerado líder em inovação tecnológica da região e pioneiro na adoção de novas tecnologias, como machine learning, inteligência artificial, big data, biometria, entre outras modernas soluções.

E não paramos por aí. Professores da Universidade de São Paulo (USP) criaram o “Farmbot”, um robô que penetra a terra na profundidade exata para cada plantio e deposita a quantidade certa de sementes de determinada cultura, respeitando os espaçamentos adequados. Ele ainda irriga os pontos de semeadura e, com a ajuda de sensores, reconhece a necessidade de cada planta por água e fertilizantes. Já as equipes do SENAI Cetiqt (Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) e Instituto SENAI de Tecnologia Automação e Simulação, do Rio de Janeiro (RJ), criaram um “espelho virtual” para transformar a relação entre consumidores e o mundo das confecções. A criação permite que o videogame “Xbox” ofereça ao usuário opções de modelos e estampas para diferentes peças de roupas e ainda tire as medidas do corpo com precisão. Conectado a uma TV que faz o papel de espelho, o cliente tem tudo ali, ao alcance da mão, para desenhar uma peça com combinação de cores e estampas totalmente exclusivas.

Já alunos do Ensino Médio Articulado com o Técnico de Eletromecânica do SESI Cefem (Serviço Social da Indústria e Centro de Educação do Ensino Fundamental e Médio) de Aracaju (SE), tiveram a ideia de aproveitar a energia gerada pela rotação dos ventiladores para outras aplicações que usam eletricidade. Ao instalar um dínamo na coluna do aparelho, os alunos conseguiram criar uma nova corrente elétrica capaz de carregar outros equipamentos, como um celular, gerando uma economia de 160 watts por mês. Aplicada na indústria, a técnica permite utilizar a energia para abastecer a iluminação de uma fábrica inteira.

“Temos muitos pólos importantes em institutos, universidades, empresas, startups e incubadoras de inovação espalhadas pelo país, criando novidades fantásticas, apesar do pouco apoio geral do poder público”, afirma o professor de Sistemas de Informação, Osvaldo Araújo. Segundo ele, infelizmente, as inovações ainda são exceções e não regra no Brasil. “É como as medalhas que ganhamos nas Olimpíadas. Os atletas chegam até lá, muitas vezes, apesar da falta de apoio, e não por causa do apoio recebido. Na pesquisa e tecnologia é igual. Produzimos, desenvolvemos e criamos com apoio escasso”, lamenta.

A assistência que não chega a todos na seara virtual reproduz a falta de acesso de milhões de brasileiros a direitos constitucionais, como saúde, saneamento básico, moradia e educação. Segundo dados do levantamento “TIC Domicílios 2019”, formulado pelo Cetic (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação), aproximadamente 30% dos lares no Brasil não têm acesso à internet — são 46 milhões de brasileiros privados da tecnologia. Desse total, 45% explicam que a falta de acesso acontece porque o serviço é muito caro e para 37% dessas pessoas, a ausência de um aparelho celular, computador ou tablet também é uma das razões. O estudo apresenta ainda que há uma diferença significativa entre as classes sociais: em famílias cuja renda é de até um salário mínimo, metade não consegue navegar na rede em casa. Na classe A, apenas 1% não tem conexão. “A desigualdade social no país é profunda, segrega cada vez mais, é pior ainda em um cenário de crise, como vivemos, e escancarada na falta de acesso à soluções digitais”, aponta a professora e socióloga Rosa Sanches.

No paradoxo do país exportador de memes e inovações, mas de milhões de excluídos digitais, tristeza maior para quem sequer conseguiu se cadastrar para receber o auxílio emergencial do governo, oferecido no ano passado, no início da pandemia. Segundo um levantamento da FGVcemif (Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getúlio Vargas), pessoas que tentaram sem sucesso receber a ajuda alegaram barreiras tecnológicas, como a falta de celular, limitação da internet e falta de memória no telefone, além da dificuldade em baixar ou utilizar o aplicativo da Caixa. Quanto mais pobre, maior a porcentagem das queixas, concentradas entre as classes D e E. Um problema sério, já que são justamente as pessoas em maior condição de vulnerabilidade social e que mais precisam de políticas de transferência de renda.

Na educação, mais desequilíbrio. Com o fechamento das escolas para conter a disseminação do coronavírus, o abismo digital pegou em cheio milhares de alunos de baixa renda. Dados de um levantamento divulgado em novembro de 2020 pelo Unicef (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância), quase 1,5 milhão de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não frequentaram a escola – remota ou presencialmente – no Brasil. Outros 3,7 milhões de estudantes matriculados não tiveram acesso a atividades escolares e não conseguiram estudar em casa. O Departamento de Ciência Política da USP e o Centro de Aprendizagem em Avaliação e Resultados da FGV (Fundação Getúlio Vargas) avaliaram a eficiência dos planos de educação remota de Estados e capitais. Os resultados, medidos entre março e outubro do ano passado, revelaram um triste cenário: a nota média dos planos estaduais no Índice de Educação à Distância, que vai de 0 a 10, foi de 2,38, enquanto o das capitais não passou de míseros 1,6.

O estudo apontou ainda que faltou supervisão para avaliar se os alunos estavam de fato seguindo as aulas e, principalmente, pouca oferta de formas de acesso, seja com aparelhos ou conexão de internet para que os estudantes conseguissem assistir às aulas online — quase todos os Estados decidiram pela transmissão via internet, no entanto só 15% deles distribuíram dispositivos e menos de 10% ofereceram acesso à internet. “Foi necessário fechar as escolas durante a pandemia, mas como uma criança ou adolescente, que sequer tem um celular ou computador em casa, consegue acompanhar os estudos? Vários não tem sequer torneira com água encanada em casa, não tem banheiro, nem o que comer. Imagine internet. Muitos professores e escolas tiveram que criar soluções sem qualquer apoio, um esforço gigante para ajudar os alunos. Outros, pouco conseguiram fazer. O descaso é desolador, entristece a gente”, critica a socióloga Rosa Sanches.

Com esse panorama, o Brasil corre o risco de regredir duas décadas no acesso à educação, segundo a FGV. “A pandemia escancarou o tamanho da desigualdade da educação no país. O que já caminhava aos trancos e barrancos tornou-se ainda pior. E vemos zero preocupação em priorizar políticas públicas para a educação contemplando esses novos fatores, assim como a destinação de recursos. Entre os políticos, a prioridade parece ser o fundão eleitoral”, desabafa Sanches. Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente o projeto de lei da Câmara dos Deputados que previa ajuda financeira de R$ 3,5 bilhões da União para estados, Distrito Federal e municípios garantirem acesso à internet para alunos e professores das redes públicas de ensino em decorrência da pandemia, deixando o futuro ainda mais nebuloso. A estimativa é de que a medida beneficiaria 18 milhões de estudantes e 1,5 milhão de docentes. Bolsonaro alegou uma questão técnica para o veto: faltou ao projeto esclarecer a estimativa de impacto da medida no Orçamento da União. A regra está prevista na Constituição e na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Apesar do caos, o professor Osvaldo Araújo tem a esperança de que os bons exemplos e a inovação brasileira ajudem a mudar a realidade. “Talvez o que é criado nos espaços privados e naqueles em que o apoio público é um pouco maior possa trazer resultados que ajudem a transformar o país. Tecnologias mais baratas, acessíveis, parcerias para criar soluções que se disseminem para áreas mais carentes. Uma união de esforços para mudar o futuro”, acredita. A socióloga Rosa Sanches concorda, mas pede coordenação e planejamento. “É uma saída possível, que de nada adianta se não tivermos um projeto de país, com grandes investimentos e foco, de estímulo aos talentos. Acho que todas as ferramentas estão aí, ao nosso alcance. É preciso democratizar”, analisa. Pelo visto, ao contrário dos memes, nas Olimpíadas do Futuro, o caminho até uma melhor igualdade social, econômica e digital conquistarem medalhas de ouro no país, ainda é uma longa corrida com obstáculos — muitos e grandes obstáculos.

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