Dentre tantos no Brasil, o episódio de estupro de Mariana Ferrer, 23 anos, pelo empresário André Aranha, 43, tornou-se objeto de debate por quase dois anos. Exposto pela vítima e replicado diversas vezes nas mídias sociais, o caso levantou diversas questões acerca da violência sexual e também moral sofrida por mulheres. Após concluído o julgamento, a publicação de documentos e trechos da audiência revelou que, mesmo após a denúncia, uma vítima continua sofrendo assédio.

Imagem ilustrativa da imagem A denúncia não basta: 'Estupro Culposo' e as violências contra a mulher
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Conforme analisado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano passado, mais de 55 mil mulheres registraram terem sido estupradas no Brasil – e segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) essa conta pode aumentar em nove vezes se considerados os casos de que não se tem registro. 5174 estupros foram listados no Paraná em 2019, o que significa cerca de um estupro a cada duas horas. E quando se olha para a punição, os números são mais assustadores. Informações do Fórum para 2017 mostram que apenas 13% dos autores são punidos – ou apenas 1%, levando-se em conta a estimativa do Ipea.

Mas por que esses índices são tão devastadores? Além do machismo já embutido na sociedade, as autoridades e instituições públicas têm falhado ao desempenhar seu papel. Ainda segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 47,2% dos profissionais de atendimento a mulher em delegacias não receberam treinamento para atendê-las de forma adequada, o que pode acarretar na humilhação da vítima e falta de provas para a acusação. O caso de Mariana Ferrer ilustra bem como não basta uma denúncia para que a justiça seja feita.

O Caso Ferrer

Em 15 de dezembro de 2018, a modelo e influenciadora digital Mariana Ferrer foi à balada florianopolitana Café de Lá Musique, da qual ela era embaixadora. Durante a festa, conheceu André Aranha, o qual a levou para uma sala privada onde tiveram relações sexuais. Durante a noite, amigos da influenciadora receberam mensagens desconexas que diziam que ela não queria estar com o homem em questão. Mais tarde ela chamou um Uber e foi para casa.

No dia seguinte, Ferrer registrou uma denúncia de estupro e o empresário foi identificado pela Polícia Civil. Ela acredita ter sido dopada naquela noite, o que a impediu de resistir ao ato.

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O Julgamento

No dia 9 de setembro de 2020, quase dois anos após o evento, o processo chegou a um desfecho: Aranha foi absolvido pela justiça. Foi argumentado que o caso não dispunha de provas suficientes para imputar o réu.

Foram utilizadas como evidências da acusação as mensagens enviadas por Ferrer, os depoimentos de seus amigos, de sua mãe e do motorista do Uber que a levou para casa, os quais testemunharam que o comportamento da garota estava alterado e poderiam indicar a ingestão de drogas. Além disso, exames do corpo de delito comprovaram conjunção carnal entre os dois, rompimento do hímen da vítima (que era virgem), e presença de material genético de Aranha em suas roupas e corpo. Na investigação, Aranha dificultou a coleta de provas, se negando a fornecer material genético para comparação. Impressões digitais e saliva foram recolhidas pela delegada Caroline Monavique Pedreira de um copo do qual Aranha bebeu água em um interrogatório.

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Em contrapartida, a defesa de André aponta que as imagens de câmera de segurança do clube mostram que, no momento em que Ferrer e Aranha entram no cômodo, não houve tentativa de resistência. Demais imagens do local não foram utilizadas no caso pois o Café de La Musique afirma que os registros de segurança são automaticamente deletados poucos dias após serem gravados. Não apenas, o posicionamento também se baseia no laudo toxicológico de Mariana. O resultado não foi positivo para ingestão de álcool ou drogas, ainda que sua comanda de consumo constasse a aquisição de uma dose de Gin. Destaca-se aqui que exames toxicológicos podem apontar negativo ainda que tenha havido consumo de drogas caso elas tenham sido eliminadas pelo corpo ou se forem substâncias ainda desconhecidas. Aranha ainda mudou sua versão da história diversas vezes durante o processo, primeiro alegando que não conhecia Ferrer, depois dizendo que ambos tiveram apenas relações de via oral e por fim admitindo a conjunção carnal, mas afirmando que foi consentida.

“Estupro Culposo” nunca existiu

Esclarece-se que a denominação de “estupro culposo” não é prevista pela lei brasileira e nem mesmo foi utilizada na sentença final do caso Ferrer. A palavra “culposo” faz referência a crimes cometidos em que o autor não tinha intenção de cometê-lo. Ao considerar-se que Mariana estava sob o efeito de entorpecentes, a acusação contra Aranha é a de estupro de vulnerável, sendo previsto no Código Penal como práticas libidinosas com alguém que “não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência” (§1º do Artigo 217-A). Como o entendimento do juiz não considerou suficientes as comprovações de que o empresário tinha conhecimento da vulnerabilidade da vítima, o indiciado foi absolvido.

Para entender melhor, imagine que um homem tenha uma relação sexual com uma garota de 13 anos. Pelo artigo 217-A do Código Penal, ele está cometendo um crime por se tratar de uma adolescente, independentemente do consentimento dela, por “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. Porém, se o autor do crime comprovar que não dispunha de recursos para saber da idade da menina, ele é inocentado, pois não existe a modalidade culposa desse crime.

A análise jurídica do Ministério Público cita o termo justamente pela impossibilidade de empregá-lo no caso de estupro. A expressão “estupro culposo” foi parafraseada pelo site The Intercept Brasil, sendo uma metáfora para a absolvição de Aranha, que causou confusões nas redes sociais.

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O processo: humilhação e conduta dos envolvidos

Ainda que a sentença tenha sido oficializada em setembro, o caso voltou aos holofotes em 3 de novembro de 2020, quando o The Intercept Brasil publicou um vídeo com trechos da audiência do episódio. Nele, uma vídeo-chamada reúne Ferrer, o juiz Rudson Marcos, o advogado de Aranha e o promotor Thiago Carriço de Oliveira. Este último não foi o responsável pela oferta da denúncia, apenas assumiu o processo após o promotor que a fez precisar deixar o caso.

Na gravação, o representante da defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, o qual já advogou para Olavo de Carvalho e Sara “Winter” Giromini, faz declarações com a intenção de humilhar Mariana. Ele a atribui de aproveitar-se do caso para fazer fama e enriquecer. “É o seu ganha pão a desgraça dos outros, manipular essa história de virgem.” – disse ele. O juiz Rudson Marcos não se pronunciou na maioria das acusações de Rosa Filho, mesmo quando ela começou a chorar e implorar por respeito.

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Essa não foi a primeira vez em que a defesa fez alegações improcedentes contra Ferrer. Mariana postou em suas redes sociais fotografias anexadas pela defesa no processo, nas quais ela aparecia seminua, mas foi comprovado que as imagens haviam sido adulteradas digitalmente. Outras fotos de teor sensual tiradas como parte do trabalho da modelo, não manipuladas, também foram anexadas e taxadas pela defesa como “ginecológicas”. O uso dessas imagens foram tentativas de imputar Ferrer de provocação. Dada a repercussão que o caso tomou na internet, em agosto de 2020 a justiça decidiu pela suspensão da conta no Instagram de Mariana, o qual era seguido por cerca de 850 mil pessoas.

Reação e autoridades

Internautas foram os que mais se manifestaram a favor da jovem, utilizando a tag #JustiçaPorMariFerrer. Um abaixo-assinado virtual que pedia pela competência das autoridades chegou a mais de quatro milhões de assinaturas, até o momento em que essa reportagem estava sendo redigida.

O ministério Público de Santa Catarina disse, em nota, que “lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes.” A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santa Catarina oficiou o advogado Rosa Filho para prestar esclarecimentos sobre sua conduta durante o processo. A Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB divulgou uma nota de repúdio contra o tratamento dado a Ferrer na audiência, qualificando-o como “inadmissível”.

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O ministro no Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes avaliou o quadro como “estarrecedor” e afirmou que o sistema de Justiça “jamais (deve ser instrumento) de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram.” A Corregedoria Nacional de Justiça instaurou uma apuração sobre a postura do juiz na audiência.

Na câmara dos deputados, também houve movimentações. A deputada Lídice da Mata (PSB) propôs uma lei já assinada por 26 deputados, a qual responsabiliza o juiz pela integridade de vítimas em julgamentos de violência sexual. Outro projeto de lei de autoria de três deputadas do PL e do PP prevê a criminalização de condutas como a apresentada pelos agentes públicos presentes na audiência. Já o deputado Guiga Peixoto (PSL) apresentou duas propostas: a de imprescritibilidade de estupro de vulnerável e o aumento da pena para condenados por estupro.

*Supervisão de Patrícia Maria Alves (editora)

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