O filme é tão iluminado quanto a esperança humanista da renovação da sociedade brasileira, para além das piores manifestações de intolerância extremista no poder. E se finalmente for chegada a hora de deixar de lado os preconceitos causadores desta intensa disseminação de ódio sem limites ? Em “Aos Nossos Filhos” (em segunda semana no Ouro Verde), tudo acontece no Brasil, com um casal de duas mulheres que se amam, e que gostariam de ter um filho. Mas o conflito com a mãe de uma delas compromete essa harmonia. Essa mãe seria tradicionalista, de extrema-direita e homofóbica, em viés bolsonarista? Não, muito pelo contrário: a divisão entre mãe e filha se desenrola em outro nível, onde um trauma profundo, que precede o próprio nascimento da filha em questão, tem grande parcela de responsabilidade. Há também valores que pertencem a classes sociais distintas onde, em particular, aparece o consumismo individualista neoliberal.

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Via de regra as relações entre mães e filhas estão repletas de possibilidades emocionais – e o bom cinema tem tratado o tema com carinho. Quaisquer que sejam as tensões que possam dividir essas relações, sempre há um vínculo inabalável que as conecta. Isso é certamente verdade para as duas mulheres adultas que são dois dos focos deste novo drama de personagens e idéias assinado pela diretora e coroteirista portuguesa Maria de Medeiros, em coprodução Brasil-França.

"Aos Nossos Filhos", em cartaz no Cine Ouro Verde,  traz uma história terna  e politizada
"Aos Nossos Filhos", em cartaz no Cine Ouro Verde, traz uma história terna e politizada | Foto: Divulgação

Vera (Marieta Severo) dirige uma ONG que cuida de órfãos soropositivos. O órgão está situado em área de encosta atraente mas encostado em uma das favelas do Rio, e tiroteios são frequentemente ouvidos na região. Mas Vera mantém mão firme na direção e calma exterior enquanto trata traumas do passado de ativista política e tenta reconstruir a autoconfiança.

(As torturas realizadas contra mulheres durante os anos de ditadura no Brasil – Vera foi uma delas – ainda são objeto de seus pesadelos na sociedade atual, e isso é ainda mais acentuado porque o fascismo assumiu o poder no país para destruir qualquer manifestação ou iniciativa cultural espontânea.)

A filha adulta de Vera, Tânia (Laura Castro, autora da peça original e corroteirista) tem um cônjuge do mesmo sexo, e o casal pretende ter seus próprios filhos. Mas os esforços infrutíferos de fertilização in vitro e uma sucessão de abortos estão afetando a harmonia doméstica do casal. Mãe e filha são duas mulheres fortes, ao mesmo tempo muito vulneráveis. Quando as coisas estão emocionalmente carregadas para cada uma delas, Vera e Tânia interagem na vida uma da outra após longo distanciamento.

Sobre a questão da transmissão sugerida pelo título do filme, elas não pertencem mais à mesma categoria social e pouco a pouco não mais às mesmas sensibilidades sociais. Elas se dividem, deixando o espectador livre para eleger o seu lado. As razões que animam os protagonistas são mais complexas do que parece à primeira vista, e o filme mostra bem que um indivíduo está longe de ser progressista sob todos os pontos de vista e que, portanto, é interessante que ele possa continuar a construir-se socialmente.

“Aos Nossos Filhos” filma esse momento de mudança do Brasil, quando a esquerda progressista conseguiu concretizar a esperança de ampliação da classe média. Através do prisma da história de um casal em crise e uma família mais dividida, a diretora Maria de Medeiros deixa entrever as divisões que pairam sobre a sociedade em pleno andamento ao longo das décadas e assina um verdadeiro ato de amor com um luminoso desfecho que vale como programa profético de vital reconciliação social. O resultado é um drama cativante sobre personagens multifacetados que envolvem e provocam o espectador.

Reverência especial a Marieta Severo. No auge da maturidade, ela irradia magnetismo, inteligência, beleza e autoconfiança. É um desempenho verdadeiramente carismático.

* Confira a programação de cinema no site da FOLHA.

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