Um movimento de vanguarda, um marco nacional, uma semana multidisciplinar, uma revolução estética, uma ruptura, eclosão da antropofagia, um abalo estético, um abalo sísmico, uma demolição e uma construção artística.

A Semana de Arte Moderna completa 100 anos, aconteceu de 13 a 17 de fevereiro de 1922, e seu movimento em onda ainda toca a arte dos brasis porque revelou mais de um país, revelou a potencialidade de uma nação "tupi or not tupi" que estava camuflada num academicismo profundo, enrolada na arte importada da Europa, sem antropofagia.

Sim, era chique falar francês, mais ainda, desde então, falar tupi-guarani.

A força e a beleza do Manifesto Antropófago de Oswald Andrade ainda grita como um fundamento:

"Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

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Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

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Tupy ou not tupy that is the question.

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Contra todas as cataqueses. E contra a mãe dos Grachos.

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Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

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(...) Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos tratados e pelos turistas. No país da cobra grande."

Capa do programa da Semana de Arte Moderna de 1922 criada por Di Cavalcanti e reproduzida na publicação "Caixa Modernista"
Capa do programa da Semana de Arte Moderna de 1922 criada por Di Cavalcanti e reproduzida na publicação "Caixa Modernista" | Foto: Reprodução/ Caixa Modernista

O manifesto ainda não perdeu a modernidade quando reivindica um sentido de nação, construída a pau a pique e metrópoles. A nação do índio sem cataquese, da junção da escola com a floresta, embora o Brasil atual tenha a cara política do descaso quando destroi a Amazônia. Um marco triste não de um legado, mas da tragédia de uma gestão que nos queima.

O manifesto era o olhar comprido para o futuro. Um futuro acondicionado em elementos que o professor universitário, crítico e escritor Jorge Schwartz reuniu na "Caixa Modernista", publicação da Imprensa Oficial de 2003, com apoio da Edusp e da UFMG.

Foto de almoço de escritores integrantes da Semana de 22. Em pé: Couto de Barros, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Sampaio Vidal, o jornalista italiano Francesco Pettinatti, Cândido Motta Filho, Paulo Prado, Flamínio Ferreira, René Thiollier, Graça Aranha, Manuel Villaboim, Godofreddo da Silva Telles; sentados: Rubens Borba de Moraes, Luís Aranha, Tácito de Almeida, Oswald de Andrade
Foto de almoço de escritores integrantes da Semana de 22. Em pé: Couto de Barros, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Sampaio Vidal, o jornalista italiano Francesco Pettinatti, Cândido Motta Filho, Paulo Prado, Flamínio Ferreira, René Thiollier, Graça Aranha, Manuel Villaboim, Godofreddo da Silva Telles; sentados: Rubens Borba de Moraes, Luís Aranha, Tácito de Almeida, Oswald de Andrade | Foto: Álbum de fotos de Tarsila Amaral/ Col. Thais Amaral Perroy/ Fotógrafo anônimo/ Reprodução

Na "caixa" estão os símbolos daquele carnaval que sambou por cima das "elites vegetais", embora tenha sido feito pela burguesia paulistana: o programa e o catálogo da exposição de arte com capa de Di Cavalcanti; o livro "Pauliceia Desvairada" (1922) de Mário de Andrade, no qual ele inaugura a poesia moderna no Brasil; o livro "Pau Brasil" (1925) de Oswald de Andrade, "primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro", segundo Paulo Prado; a reprodução do número 1 da revista Antropofagia; cartões-postais com várias telas como "A Boba", de Anita Malfatti; "A Caipirinha" e "A Negra" de Tarsila do Amaral; o "Bananal" de Lasar Segall; o CD "Música em Torno do Modernismo", produzido por José Miguel Wisnik e Cacá Machado, um braço ligando o passado ao presente. Um abraço que funda e resgata a nação antropófaga.

Postos os elementos fundadores do Modernismo Brasileiro, vamos comer! E perguntar que importância tem a Semana 100 anos depois e qual a sua atualidade.

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Livros que analisam e resgatam o modernismo brasileiro

A SEMANA NA IMPRENSA

A imprensa traz várias reflexões sobre os 100 anos do evento.

O poeta e crítico literário Ítalo Moriconi disse em entrevista ao Correio Braziliense: "O modernismo criou o conceito e a prática do moderno no Brasil. A maneira como o Brasil cultural e artístico se vê a si próprio, ao longo de todo o século passado, desde a Semana de 1922, foi moldada pelo modernismo. O modernismo reviu a história brasileira e resgatou nossa herança colonial e escravocrata. Do ponto de vista da linguagem literária, o modernismo coloquializou, estabeleceu e homogeneizou o padrão linguístico nacional."

icon-aspas A proposta era uma intervenção visando dois edifícios canônicos: o literário e o histórico
Ítalo Moriconi -

E mais: "Eu não acho que a poesia pau-brasil seja alta literatura nem que Oswald pretendia que fosse, a não ser ironicamente. Mas certamente a proposta era uma intervenção singular, criativa, extremamente inteligente e original visando dois edifícios canônicos, o literário e o histórico. (...) Todos os grandes autores brasileiros do século 20, prosadores e poetas e dramaturgos como Nelson Rodrigues, todos, sem exceção, são tributários dos valores e da língua brasileira culta consolidada pelo modernismo."

Já o escritor Ruy Castro declarou, em síntese, em artigo na Ilustríssima da Folha de S. Paulo de 5 de fevereiro, que a Semana de Arte Moderna teve seu processo de institucionalização iniciado em 1972, quando sua história passou a ser revista para ganhar a força de verdade incontestável, em meio a celebrações ufanistas da ditadura nos 150 anos da Independência. Irônico, ainda declarou, agora com aspas, "dela derivou tudo de moderno que veio depois, da antropofagia à dieta do glúten." E mais: "Nenhum ágape brasileiro a supera em bibliografia. Nenhum teve sua história contada e convertida numa grande lenda urbana, a que novos episódios continuam sendo acrescentados, formando um épico em progresso."

Castro faz uma avaliação estrábica, com indícios de que a Semana revelou nada mais que o provincianismo de São Paulo e que "os jornais do Rio e do resto do País a ignoraram". Tece depois longas considerações - ou conclusões - de que o marco do modernismo não teve nada a ver com as revoltas políticas que se sucediam no Rio de Janeiro e questiona o progressismo de Oswald de Andrade em boa parte do texto.

Seu artigo, gerou crítícas severas nas redes sociais e na imprensa.

Mas vale a pena ler o que diz a jornalista, escritora e historiadora Márcia Camargos em entrevista ao site Agenda Tarsila que reúne os eventos comemorativos da Semana e traz diversos conteúdos inéditos.

Camargos, que é autora de vários livros que analisam a Semana, .afirma: “Se não tivesse havido este grito de revolta, nós não estaríamos hoje talvez neste momento tão fecundo da produção artística onde, inclusive, as periferias, a contribuição do repertório negro, que foi deixado de fora da Semana de 22, e hoje ocupa o centro do palco. Nós temos aí a riquíssima contribuição das periferias, favelas, dos movimentos negros, dos transgêneros, que estão ditando, dando as cartas, na produção literária e artística brasileira.”

icon-aspas Nós temos aí o contribuição das periferias que estão dando as cartas na produção literária
Márcia Camargos -

Aí está o abraço que funde o passado com o presente, os caminhos que hoje desaguam numa atualização do modernismo, ou no pós-modernismo, conceito que o jornalista, escritor e dramaturgo londrinense Renato Forin Jr. também aprofunda nesta página, em artigo especial para a Folha 2, quando a afirma: "Acredito que o movimento – não centralizador, mas difuso e incontornável – mais revolucionário atualmente, e que ocupa de certa forma o lugar das reivindicações pela descoberta do Brasil, pela língua brasileira, pela aliança entre cultura letrada e popular, de que Mário e Oswald de Andrade tornaram-se ícones, é o da literatura das identidades. Ou seja, a escrita e as manifestações artísticas em cena expandida propostas por artistas até então invisibilizados por uma história colonial e escravocrata, a refletir experiências profundas, vívidas e vividas, do ser brasileiro."

Sela-se assim uma cultura e uma arte de identidades múltiplas, o coração visionário e agora vísivel do Brasil.

O QUE O MODERNISMO REPRESENTA HOJE

Em artigo, o jornalista, escritor e dramaturgo Renato Foin Jr reflete sobre o modernismo e a identidade nacional

Renato Forin Jr.: "Hoje, artistas negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, interioranos, periféricos das grandes cidades e de outras minorias sociais se destacam do espaço de personagens narrados por outrem para serem  porta-vozes das histórias de suas coletividades "
Renato Forin Jr.: "Hoje, artistas negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, interioranos, periféricos das grandes cidades e de outras minorias sociais se destacam do espaço de personagens narrados por outrem para serem porta-vozes das histórias de suas coletividades " | Foto: Fábio Alcover/ Divulgação

"Tento pensar hipoteticamente em uma Semana da Arte Moderna hoje e caio no desvão da impossibilidade. Acho mesmo que seria impossível um evento mobilizador e estrondoso, com aquele impacto, pela própria ordem dos tempos e pela transformação da estrutura social, que, aliás, são filhas da modernidade e do modernismo.

A Semana de 22 é a eclosão de ideias esteticamente revolucionárias no marasmo da arte acadêmica e formatada. Ocorre, portanto, no topo de uma sociedade piramidal e num cenário político das elites. Um terreno de disputas entre grupos conservadores e progressistas, burguesia e aristocracia, Rio de Janeiro e São Paulo. O que não exclui, de modo algum, sua importância estética, que lança laivos nas artes e no comportamento mesmo um século depois.

Hoje, propiciada pelos meios de comunicação, vivemos em uma sociedade em rede, em que é difícil demarcar limites entre centro e margem. Muitos núcleos de saber aparecem, reivindicam seus lugares de fala e rivalizam o tempo todo, de forma que tendem a uma horizontalidade, fazendo a pirâmide ruir. Ou seja, qualquer tentativa de impor uma nova ordem, hegemônica, dissipa-se com a mesma velocidade com que aparece e fica difícil pensar no que fincará estacas na História, ainda que de forma simbólica, como fez a Semana. Essa pluralidade é o que, provisoriamente, o campo teórico tem chamado de Pós-Modernismo.

Condizente com tal contexto, acredito que o movimento – não centralizador, mas difuso e incontornável – mais revolucionário atualmente, e que ocupa de certa forma o lugar das reivindicações pela descoberta do Brasil, pela língua brasileira, pela aliança entre cultura letrada e popular, de que Mário e Oswald de Andrade tornaram-se ícones, é o da literatura das identidades. Ou seja, a escrita e as manifestações artísticas em cena expandida propostas por artistas até então invisibilizados por uma história colonial e escravocrata, a refletir experiências profundas, vívidas e vividas, do ser brasileiro.

Refiro-me a artistas negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, interioranos, periféricos das grandes cidades e de outras minorias sociais, que se destacam do espaço de personagens narrados por outrem para serem protagonistas e porta-vozes das histórias de suas coletividades representadas. Isso se integra, claro, ao diálogo nem sempre amistoso com a persistência do pacto ficcional e ao exercício de alteridade, que é a essência da literatura. Da disputa ampla e irrestrita pelos lugares de fala e de escuta se faz a longa Semana do presente."

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Renato Forin Jr. é jornalista e dramaturgo. Mestre e doutor em Estudos Literários pelo PPG Letras da Universidade Estadual de Londrina, com doutorado sanduíche pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. É diretor do Agon Teatro e atua como professor temporário do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da UEL. Foi contemplado no 59º Prêmio Jabuti com o livro-CD “Samba de uma noite de verão”.

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