Um livro nunca publicado da romancista, poeta e compositora brasileira Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) será lançado ainda neste ano. A obra, que foi batizada de "O Escravo", estará disponível para compra em 11 de dezembro e deve contar com textos totalmente fiéis aos manuscritos deixados pela autora.

A publicação do romance é uma forma de ressaltar a importância de Carolina, que, após obter fama mundo afora por seus diários sobre a favela de Canindé (SP), não conseguiu se alçar como uma romancista ficcional, seu grande sonho.

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Amanda Crispim - professora londrinense que leciona na UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná) de Curitiba e é reconhecida por suas pesquisas em Carolina de Jesus - faz parte do Conselho Editorial da Companhia das Letras, editora que comprou os direitos sobre as obras. O Conselho é formado por quatro pesquisadoras, além de Conceição Evaristo, escritora e linguista, e Vera Eunice de Jesus, filha mais nova de Carolina.

O grupo tem o objetivo de manter a estilística da autora, constantemente alterada nas obras publicadas na década de 1960. Em 2021, republicaram "Casa de Alvenaria" (1961) sem os recortes feitos por Audálio Dantas, jornalista que “revelou” Carolina para o mundo.

Crispim salienta que a publicação da obra inédita "O Escravo" é uma conquista para o legado da romancista. “Eles achavam que essa Carolina do poema, que escrevia de amor, que escrevia romance e peças teatrais não combinava. Esse direito foi negado a ela”, afirma.

Para a professora, "Quarto de Despejo" (1960) fez sucesso porque era novidade, já que a mídia não esclareceu, na época, que Carolina teve um processo de formação, mesmo que precário e autodidata. Assim, a elite – que era quem mais lia a obra – ficou perplexa com a ideia de uma favelada que conseguiu escrever um livro. A curiosidade sobre a maneira como sobreviviam as pessoas de Canindé também foi importante para a popularização do texto.

Até mesmo o segundo diário – "Casa de Alvenaria" –, publicado após o êxito do primeiro, não obteve o mesmo alcance. A pesquisadora relata que as críticas à elite, à mídia e ao mercado editorial contidas no livro fizeram com que Carolina fosse rechaçada e sabotada por pessoas ligadas a esses grupos. No entanto, a autora passou a ganhar público nas favelas e nos movimentos negros pelo mundo.

MAIS QUE UM DIÁRIO

Multifacetada. Esse é o adjetivo que pode ser atribuído à Carolina de Jesus, segundo Crispim. A pós-doutora em Letras reflete que a escritora abrangeu diversos temas em seus textos, alguns, inclusive, são pauta até hoje, como a violência policial contra negros, a mulher solteira e

independente e a violência doméstica.

Tratada pela mídia como a voz que expunha as mazelas sociais dos periféricos, Carolina, no entanto, tinha um outro lado. Sua verdadeira paixão eram os romances e a ficção. Além disso, em seus rascunhos, foram encontrados até mesmo contos humorísticos

“Na minha tese, que estuda os poemas de Carolina, uma das reflexões que eu fiz foi exatamente essa: mostrá-la como uma escritora multifacetada, que falou de diversos temas e reivindicou, durante toda a vida, o direito à ficção. A negação a esse sonho também foi uma

forma de racismo”, diz.

Sua vontade em trabalhar com o ficcional era tão grande que, após ganhar dinheiro com "Quarto de Despejo, investiu na publicação de três projetos: "Provérbios", romance de 1963; "Pedaços da Fome", também de 1963; e a gravação do seu disco de autoria própria, homônimo

do seu diário de maior sucesso.

QUARTO DE DESPEJO

Um espaço para a destinação de lixo e dejetos. É dessa forma que Carolina Maria de Jesus explica, metaforicamente, o título da obra em trechos do seu livro. A narrativa rica e as palavras de impacto foram apresentadas a Audálio Dantas, quando ele buscava informações para produzir uma reportagem sobre a favela de Canindé. O jornalista, então, pediu autorização para publicar os manuscritos e definiu o nome: "Quarto de Despejo."

Com uma linguagem ligada ao popular e que demonstrava os sentimentos da autora e de quem estava à sua volta, o livro foi criticado pelos supostos erros gramaticais que continha. Segundo Crispim, tudo fruto do racismo.

“A linguagem de Carolina sofreu preconceito por causa do racismo. Já era comum uma linguagem mais coloquial. Já havia vários autores aderindo a isso. Mas a escrita dela, por ser preta e favelada, era considerada errada”, analisa.

Engana-se quem pensa que a autora não conhecia a norma padrão. A professora da UTFPR explana que cada vírgula fazia parte de um projeto idealizado por Carolina, por isso a importância de não alterar os manuscritos deixados por ela.

“Ela conhecia muitos aspectos da norma padrão. Inclusive, diferenciava as obras. Falava que nos poemas usava os clássicos [padrão] e nos diários usava o popular para segmentar o seu público. Usava a língua portuguesa de uma maneira diferenciada. Tinha um projeto estético”, ressalta.

Amanda Crispim diz que Carolina também não estava à frente do seu tempo, apenas teve acesso a informações que poucos de sua classe tinham.

“Ela fazia leituras reais do Brasil. Fazia uma análise complexa de sua realidade. Não estava à frente do seu tempo. Teve acesso a leituras e informações que poucos tiveram. As pessoas que estavam atrasadas”, conclui.

Imagem ilustrativa da imagem Romance inédito de Carolina de Jesus será lançado ainda em 2023
| Foto: Arquivo pessoal

A RELAÇÃO DA PESQUISADORA COM SEU OBJETO DE ESTUDO

A história entre a pesquisadora Amanda Crispim e o seu objeto de estudo, Carolina Maria de Jesus, começou em 2008. Com apenas 20 anos, ainda na graduação, conheceu o livro que marcaria toda a sua jornada acadêmica.

Sendo uma das poucas estudantes negras no curso de Letras da UEL (Universidade Estadual de Londrina), não conhecia nenhuma autora também negra até então. Isso mudou após uma de suas professoras lhe apresentar "Quarto de Despejo." A partir dali, reconheceu-se nas palavras

da autora, guiando toda a sua vida por meio delas.

Atualmente, a professora da UTFPR é referência nos estudos daquela que lhe serviu de referência. Sua tese de doutorado foi transformada em livro pela editora Malê, em 2022, com o título: "A poesia de Carolina Maria de Jesus: um estudo de seu projeto estético, de suas

temáticas e de sua natureza quilombola."

Para ela, o seu maior objetivo é expor a importância dos negros em todas as camadas da sociedade. “Meu trabalho sempre foi pensado para uma escola que luta contra o racismo, que apresenta um país diverso, decolonial e que valoriza a presença negra na história da literatura, da ciência e da tecnologia”, encerra a docente.