No jornalismo, quando morre alguém importante, enxergamos primeiramente a notícia. Texto pronto, foto escolhida, a matéria vai para o site e, só depois, temos direito ao baque.

Nesta quarta-feira (9), quando morreu Gal Costa, fui ao almoçar com aquela inapetência comum a quem perdeu uma pessoa quase íntima. Não era parente, mas nas últimas décadas, embalou meus amores, minhas festas, meu descanso, minhas aventuras.

"Alguém cantando longe daqui/ Alguém cantando longe, longe/ Alguém cantando muito/ Alguém cantando bem/

Alguém cantando é bom de se ouvir."

LEIA MAIS:

Como a voz de cristal de Gal Costa ecoou em Londrina

A "voz de cristal" em "Alguém Cantando", de Caetano Veloso, ficou no meu pensamento. Era Gal que me encantou menina, quando a MPB eclodia numa fase que considero, até hoje, sem reposição.

Durante o almoço, quando me trouxeram a comida no restaurante cheio, pensei: "Deus abençoe as garçonetes." O prato de arroz, o bife e o suco eram como o carinho de alguém desconhecido. Ao pagar, percebi que nem todo mundo "ouvia" alguém cantando naquele almoço. Resolvi encarar e falei : "Estou triste, morreu Gal Costa!"

A garçonete me olhou e disse: "Quem?"

Pensei: "Onde estava essa moça nos últimos 20 anos?" E me passou pela cabeça que ela ouvia Gusttavo Lima, mas fui embora agradecida - "Deus abençoe a garçonete!" - embora ache que a MPB de Gal e outros baianos ficou mesmo sem reposição.

Na entrada do prédio, o porteiro me diz que chegou uma encomenda. Era meu tênis. Lembrei da Gal descalça, cantando nos shows com Gil, Bethânia e Caetano. E pensei na Gal de cabeleireira solta, um milhão de fios se conectando com a vanguarda. Lembrei da Gal com a boca pintada de vermelho, num sorriso de explosão estelar. O inconsciente manda mensagens sem pés à cabeça. Pensei: "Deus abençoe os porteiros que me dão as encomendas!"

Porque era dia de abençoar todo mundo, colocando a dor na forma do afeto, como ensina a música de "alguém

cantando" naquele timbre de cristal.

Em casa, vi que os amigos que cantaram Gal comigo, desde as rodas universitárias, enviavam mensagens de todo o País. No perfil "Nossos Orixás", no Twitter, havia uma mensagem baianamente bonita: ""Hoje a filha do silêncio e grande cantora, iniciada para Obaluaye por Mãe Menininha do Gantois, Gal Costa retornou ao Orum. Que ela tenha bom descanso."

Não sou versada em iourubá, mas senti que a despedida tinha aquela dose de amor que uma das maiores mães de santo da Bahia - Mãe Menininha - destina aos seus filhos e filhas. Pensei: "Que terra abençoada é essa em que Gal nasceu e onde seu espírito deve descansar como um cântico".

Assim reencontrei "alguém cantando" muito ... e bem!

Gal faz silêncio, tambores tocam o coração do Brasil.

A voz de cristal se foi, mas não partiu.

...

Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link