Em seu novo romance, “O Último Endereço de Eça de Queiroz”, o escritor paranaense Miguel Sanches Neto utiliza as ferramentas do humor e da ironia para retratar a busca pela fama no mundo literário.

Discutindo a posição do escritor contemporâneo diante da literatura, Sanches Neto apresenta a história de um sujeito que adota o pseudônimo de Rodrigo S. M. Mesmo nome do personagem fictício do romance “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector. Sem ter escrito um único livro, Rodrigo deseja ser um famoso escritor e revolucionar a literatura brasileira. Para conseguir o seu objetivo, abandona o emprego em Curitiba para passar uma temporada em Portugal e respirar a verdadeira “civilização literária”.

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Em busca de inspiração para o livro que deseja escrever, Rodrigo S. M. vaga por Portugal visitando lugares onde viveram cânones da literatura portuguesa como Fernando Pessoa, Eça de Queiroz e José Saramago.

A jornada do personagem se revela uma grande farsa. Ao colocar o sucesso antes da literatura, percorre uma espiral ególatra e pretensiosa que culmina em delírio.

Autor de mais de 30 livros, Miguel Sanches Neto a seguir fala sobre seu novo romance lançado pela editora Companhia das Letras.

O personagem principal de “O Último Endereço de Eça de Queiroz” busca escrever um livro que nunca escreve. Também procura uma fama como escritor que nunca pode alcançar. O livro pode ser descrito como um romance sobre o autoengano literário?

É justamente esta questão de alimentar sem escrúpulos uma ilusão vocacional que marca a trajetória deste narrador, que é um equivocado, desde a ideia inicial de que, para ser escritor, tem que morar na Europa. Houve uma glamourização do escritor, principalmente pelas redes sociais e festas literárias, o que tem levado a uma produção excessiva de livros por pessoas que buscam o sucesso. O meu narrador é um animal desta espécie, que quer a curtição da vida literária, com tempo para sexo,

passeios, discussões, para anular a sua condição de empregado, de funcionário. Ele é o contrário do artista autêntico, que escreve nas condições mais adversas, enquanto desenvolve atividades profissionais nem sempre dignificantes.

“O Último Endereço de Eça de Queiroz” pode ser considerado um romance sobre o logro literário ou um romance sobre a decepção diante da idealização da literatura?

Um romance é sempre várias coisas ao mesmo tempo, pois o seu sentido é múltiplo. Pode ser tipificado destas duas maneiras e também de outras, como um romance de retorno irônico ao mundo rural de onde o personagem quis fugir. Um romance sobre o encontro com uma identidade que era constantemente falseada. Um romance sobre o enlouquecimento pelo culto de uma identidade de conveniência. Enfim, muitas portas estão abertas. E cada leitor vai escolher uma delas para entrar no

livro.

O personagem principal de “O Último Endereço de Eça de Queiroz” exala uma boa dose de ironia sobre a literatura portuguesa. Você considera que a literatura brasileira ainda necessita dos cânones da literatura portuguesa?

A literatura portuguesa usa uma estrutura ainda muito formal. Isso tem uma força canônica que eleva o idioma a um nível mais literário. A literatura brasileira moderna trabalha muito com a oralidade, com os usos literários da fala, o que traz a nossa literatura mais para o cotidiano, para o chão da existência, para a linguagem de rua. São, portanto, literaturas com índoles muito diferentes. Por exemplo, é muito difícil encontrar bom diálogo na literatura portuguesa, as falas são mais engessadas, mais protocolares. Eu trabalho isso no romance de uma forma meio humorística. Mas as duas literaturas se completam e se retroalimentam, em interação com a grande produção africana.

Você foi para Portugal para criar o livro ou a contextualização e a ambientação foram imaginativas?

Eu morei em Portugal por um ano, que dediquei ao estudo da obra de Eça de Queiroz e suas relações com Graciliano Ramos. Neste um ano, peregrinei pelas casas-museus de escritores, convivi com escritores e críticos literários, vi paisagens, fiquei hospedado na Fundação Eça de Queiroz, participei de eventos. Eu me deixei encharcar de uma experiência lusitana. Então, muito do que está no livro é fruto de observação, de contaminação de ambientes visitados. Mas o romance é totalmente inventado. Não segui aquele trajeto feito pelo jovem narrador.

No final de “O Último Endereço de Eça de Queiroz” você, como escritor, subverte a realidade para revelar a subjetividade da própria literatura. Qual sua intenção nessa abordagem?

O final do romance pode ser lido como um delírio de um narrador mitômano, que incorpora a alma de Eça de Queiroz e sofre uma sobreposição de identidade. É a parte dramática, mas também humorística. Porque ele só consegue ser escritor ocupando imaginariamente a identidade de Eça de Queiroz. Por outro lado, é uma cena forte, um fluxo de consciência, em que Eça revive na pele e na voz de um jovem para poder matar as saudades de ter um corpo e visitar uma casa na qual ele nunca morou. Então, o final é aberto: delírio ou manifestação do mágico?

Imagem ilustrativa da imagem 'O Último Endereço de Eça de Queiroz:' a literatura ao avesso
| Foto: Reprodução

Serviço:

“O Último Endereço de Eça de Queiroz”

Autor – Miguel Sanches Neto

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 182

Quanto – R$ 64,90 (papel) e R$ 39,90 (e-book)