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OPINIÃO 5m de leitura

"O avesso da pele": PR volta ao tempo da censura aos livros

O recolhimento do livro de Jeferson Tenório das escolas públicas do PR, a ser concluído nesta sexta-feira (8), é uma face do obscurantismo

ATUALIZAÇÃO
09 de março de 2024

Celia Musilli
AUTOR

Imagem ilustrativa da imagem "O avesso da pele": PR volta ao tempo da censura aos livros

A ação da Secretaria Estadual de Educação (Seed)  de recolher o livro "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, das escolas públicas do Paraná, é um ato que está na contramão da literatura.

Premiado com o Jabuti de melhor romance em 2021,  "O Avesso da Pele" é um livro sobre o racismo, "abordado em todos os seus tons e nuances", como escreveu Marcos Losnak, crítico literário da FOLHA, em sua coluna Leitura, quando o livro foi premiado.

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É estarrecedora a notícia de que uma obra que integra o Programa Nacional do Livro (PNLD) - que compra e distribui livros didáticos para a rede pública do País - e que é indicada aos alunos do Ensino Médio, passe por esse tipo de filtro constrangedor, numa indicação de que estamos dando marcha à ré, em vez de avançar no entendimento do que é literatura e do que  é educação.

Até esta sexta-feira (8), o livro deverá ser recolhido em todas as escolas públicas para passar por "análise pedagógica e posterior encaminhamento", segundo a Seed.

O ato que repercutiu na Assembleia Legislativa do Paraná, com o livro sendo alvo de agressões por parte de parlamentares que possivelmente não o leram mas o consideram "um lixo", é de uma arbitrariedade que reedita dias sombrios no Brasil. Numa ação francamente populista, deputados que ganharam eleições com sua projeção de "cantora gospel" ou "pastor" dão mostras de como a política e a religião não combinam, a não ser para formar uma mistura nefasta de valores que permeia a crítica sem conhecimento. O que falta é preparo para avaliar a literatura como literatura, a educação como educação.

Um livro que aborda as mazelas do racismo e da violência policial, temas centrais da obra de Tenório, decerto não interessa aos  que nunca acordaram com a notícia de que um membro de sua família foi assassinado pelas forças do Estado ou soube que seu filho sofreu racismo ao frequentar um shopping destinado aos brancos, segundo a concepção mais tacanha de segregação racial, amplamente difundida e velada num País onde a violência contra os negros assombra.

Em 2021, ano da publicação do livro "O Avesso da Pele", de cada 10 pessoas assassinadas no País 8 eram negras, segundo os dados do Atlas da Violência, publicação anual do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que compara:    

“Duas pessoas com as mesmas características (escolaridade, sexo, idade, estado civil), que moram no mesmo bairro, sendo uma negra e uma branca, a primeira tem 23% a mais de chances de ser assassinada em relação à segunda. Ou seja, além dos canais indiretos, por meio dos quais o racismo estrutural opera para legar uma maior taxa de letalidade para a população negra, há o racismo que mata, operando diretamente na letalidade contra negros, por meio de um processo atávico de desumanização, que imprime uma imagem estereotipada do negro como perigoso, como pobre e bandido”, informa a publicação.

Jeferson Tenório: autor de O Avesso da Pele, livro premiado com o Jabuti em 2021, é professor de literatura do Ensino Médio da rede pública do RS

UMA OBRA IDEAL PARA A ESCOLA PÚBLICA

A julgar pela tragédia dos números, o lugar para que se estude e analise uma obra como "O Avesso da Pele" é justamente as escolas da rede pública do estado, onde estão os alunos negros e pobres, em sua maioria, que já sofreram ou sofrem a discriminação e a violência.

Destaca-se o fato de que o estudo da obra não é destinado a crianças do Fundamental, mas a alunos entre 15 e 18 anos que frequentam o Ensino Médio de onde o livro está sendo retirado em mais uma ação desconectada com a realidade, sendo que a literatura espelha e reflete sobre a realidade em obras de caráter social.

Segundo o professor, escritor e crítico literário Antônio Cândido "o direito à literatura deságua na justiça social". Justamente o que propõe a obra de Jeferson Tenório que apela para a justiça através de personagens que representam a parte segregada da sociedade brasileira. O personagem principal de seu romance, Pedro, é um jovem como um desses do Ensino Médio das escolas públicas, negro e pobre, que busca entender a trajetória de seus pais, descendentes de escravos, e suas implicações socais e afetivas na sua própria trajetória. Quem, a não ser os alunos das escolas públicas, poderia compreender tão bem essas relações a partir de um livro?

A obra de Jeferson Tenório não sofre censura apenas no Paraná, no Rio Grande Sul uma diretora de escola iniciou a "cruzada" justificando a censura  da seguinte forma: "o livro tem vocabulários de baixo nível para serem trabalhados com estudantes do Ensino Médio".  Uma máxima que hoje repercute na Assembleia Legislativa do Paraná na qual , certamente, obras de Jorge Amado - como Dona Flor e Seus Dois Maridos ou Capitães de Areia - não passariam pelo crivo  dos parlamentaraes que se transformam em fiscais da sociedade mesmo onde a liberdade deveria ser um lugar de conhecimento: as escolas públicas.

Sem dúvida, se jogássemos nas bancadas da Assembléia obras de João Gilberto Noll, Jean Genet ou Georges Bataille é provável que muitos correriam como diabos da cruz, sem o entendimento do que é literatura.

Jeferson Tenório, autor de "O Avesso da Pele",  classificou  a atitude da Seed como "uma violência e uma atitude inconstitucional" nas redes sociais.

O escritor nasceu em Madureira,  zona norte do Rio de Janeiro,  em 1977. Aos 10 anos mudou-se para Porto Alegre, onde vive até hoje. Formou-se pela UFRGS como primeiro cotista negro décadas atrás. Foi professor de literatura na  rede pública do RS por dezenove anos, é autor dos livros "O Beijo da Parede" (Sulina, 2013), "Estela Sem Deus" (Zouk, 2018)  e "o Avesso da Pele" (Companhia das Letras, 2020).

Sua trajetória o credencia como autor e professor que conhece a realidade e a transforma em literatura  e educação para alterar nossa leitura de mundo através das cicatrizes do preconceito sofrido em sua própria pele, um entendimento que vai muito além das máscaras da censura. 

* A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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