O livro vencedor do prêmio literário Jabuti de 2021 na categoria romance, anunciado última quinta-feira (25), coloca o dedo na ferida, no machucado, na fratura, na chaga, no hematoma, no corte e na contusão do racismo brasileiro.

“O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, apresenta a saga de uma família de negros vivendo todos os tipos de vicissitudes oriundas da condição de descendentes de escravos no Brasil contemporâneo. Narrado por três vozes, o protagonismo recai sobre Pedro, um jovem que procura entender o passado de seus pais e as implicações afetivas de suas trajetórias de vida.

Jeferson Tenório nasceu em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, em 1977. Com 10 anos de idade se mudou com a mãe para Porto Alegre, cidade onde vive até hoje. Foi o primeiro cotista negro a se formar pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) uma década atrás. Professor de literatura na rede pública de ensino de Porto Alegre, é autor dos romances “O Beijo da Parede” (Sulina, 2013) e “Estela Sem Deus” (Zouk, 2018).

Jeferson Tenório, autor de "O Avesso da Pele" e ganhador do Jabuti de melhor romance, foi o primeiro cotista negro a se formar pela UFRS há uma década
Jeferson Tenório, autor de "O Avesso da Pele" e ganhador do Jabuti de melhor romance, foi o primeiro cotista negro a se formar pela UFRS há uma década | Foto: Carlos Macedo/ Divulgação

Apesar de abarcar uma ampla gama de temas que envolvem uma saga familiar contemporânea, “O Avesso da Pele” obra aborda o racismo em seus infinitos tons, nuances, formas, implicações e consequências. A seguir alguns trechos do livro:

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“A intimidade com o negão da família aumentou. As piadas sobre negros agora eram contadas sem nenhum pudor. Eles se tornaram cúmplices. No início você ria, porque você queria continuar agradando e mostrar que era superior a tudo a tudo aquilo, mas aos poucos, você ia sentindo que não queria mais ouvir certas coisas.”

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“Você apenas pensa que havia um problema com você, mas talvez nunca tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, de toda aquela vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor de sua pele. Que sei receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as orientações que você recebeu desde a infância: não chame a atenção dos brancos. Não fale alto em certos lugares, as pessoas se assustam quando um negro fala alto. Não ande por muito tempo atrás de uma pessoa branca, na rua. Não faça nenhum movimento brusco quando um policial te abordar. Nunca saia sem documentos. Não ande com quem não presta. Não seja um vagabundo, tenha sempre um emprego. Tudo isso passará reverberando em você. Como uma espécie de mantra. Um manual de sobrevivência.”

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“Eu perguntei como ela suportava tudo aquilo. Aquilo o quê?, ela perguntou. Tudo isso, de ser julgada pela cor da pele. Minha tia olhou com tristeza e disse que a gente se acostuma. A gente se acostuma com tudo. A gente se acostuma quando você caminha pela rua e as pessoas recolhem as bolsas e mochilas, a gente se acostuma quando os próprios homens preferem as negras mais claras, a gente se acostuma a ser só. A gente se acostuma a chegar numa entrevista de emprego e fingir que não percebeu a cara desapontada do entrevistador. Mas não estou reclamando, porque com o passar dos anos eu aprendia a me defender bem. Aprendi a inventar estratégias de sobrevivência. Seu pai também teve que inventar estratégias. Mas isso não significa que sejamos sempre bem-sucedidos. Quero dizer que nós, às vezes, falhamos. E ao falhar, no nosso caso, pode resultar num erro fatal. Ainda assim a gente segue. O que você tem que compreender é que os homens negros sofrem suas violências. E que mulheres negras sofrem outras. Algumas são parecidas. Mas, veja, somos diferentes. Nem sempre as causas são as mesmas.”

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“Você sempre dizia que os negros tinham que lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos e viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculo, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.”

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“Quando uma pessoa branca nos elogia, nunca sabemos se aquilo é sincero, ou apenas uma espécie de piedade, ou para não se sentir culpada, ou mesmo para não ser acusada de racismo. Não sabemos avaliar nosso fracasso. Porque é tentador atribuir todas as nossas fraquezas e nossas falhas ao racismo. E, para não cair nessa armadilha, você precisa tirar forças sabe-se lá de onde e construir dentro de si uma espécie de balança ética. Porque você passa a vida inteira que, apesar de tudo, você tem que agüentar. Você passa boa parte da vida apanhando e ainda te dizem que você não pode fazer certas coisas. Que você não é capaz. E para sobreviver, porque é assim que você vê a vida: um tumulto vital com o qual você tem de lidar apesar da cor de sua pele. Você não só mostra que é capaz, como também precisa mostrar que é sempre melhor. E quando você falha, quando você cai, você precisa abrir mão da autopiedade, mesmo que seja sua única bengala, mesmo que haja um mundo nefasto ao seu redor, é preciso ser honesto com seus afetos. Mas isso dói. E às vezes não se quer ter essa coragem. E ainda assim, por mais que você seja sincero consigo, por mais que você derrube as ilusões, sobrará sempre aquela dúvida sobre suas reais capacidades. E essa é a perversidade do racismo. Porque ele simplesmente te impede de visitar os seus próprios infernos.”

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“Perguntei por quê, e ela respondeu que talvez os negros não se sentissem à vontade em determinados espaços, quando como, por exemplo, uma mulher negra decide entrar numa loja voltada para a classe média. Essa mulher só vai entrar se ela puder comprar alguma coisa lá dentro, entende? Ou seja, ela não pode se dar o luxo de simplesmente entrar, olhar e sair. Mar por quê?, perguntei. Porque ela simplesmente não pode. Porque é como se ela estivesse conformando o estereótipo de que pessoas negras não têm grana. E, mesmo que elas não tenham, quando entram numa loja como essa, é preciso que mostrem que elas também podem comprar ali.”

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. | Foto: Divulgação

Serviço:

“O Avesso da Pele”

Autor – Jeferson Tenório

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 194

Quanto – R$ 59,90 (papel) e R$ 29,90 (e-book)