Um órgão do corpo humano dentro de um vidro, devidamente conservado em formol. Algo como aquelas cobras e aranhas dentro de vidros que repousam nas prateleiras das aulas de ciência. Aqueles vidros que as crianças olham e logo exclamam um “credo!”. No caso, o órgão trata-se de um coração. Um coração humano. O coração de D. Pedro I falecido em 1834.

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Em um vidro com formol, o coração do ex-imperador do Brasil subiu na terça-feira (23) a rampa do Palácio do Planalto com todas as honras e pompas de Chefe de Estado em comemoração ao bicentenário da Independência do Brasil do Império Português ocorrida em 1822. Do ponto de vista governamental, tudo se resumiu a uma comemoração cívica aos 200 anos da Independência. Uma homenagem a um herói.

Mas existe a possibilidade de outro o ponto de vista. Qual seria o ponto de vista dos fantasmas dos indígenas brasileiros dizimados pela colonização portuguesa? Os povos originários ofereceriam as mesmas pompas e honras ao coração do ex-imperador? Receberia homenagens de herói? Uma possível resposta está no mais recente romance do escritor português Valter Hugo Mãe, “As Doenças do Brasil”, lançado pela editora Globo dentro do selo Biblioteca Azul.

Hugo Mãe realiza uma alegoria sobre a colonização portuguesa do Brasil do ponto de vista dos nativos. Narra a trajetória de um indígena que nasceu fruto de um estupro. No meio da floresta sua mãe é agarrada, espancada e violentada por um homem branco, um português. Apesar de toda violência, sobrevive e dá à luz a um mestiço que recebe o nome de Honra.

Honra nasce com a pele branqueada. Apesar de aceito como um igual pela tribo, possui o mal-estar de carregar a cor do inimigo: “Sei agora e não sei como não via mesmo vendo. Sou branco. E esta cor não é cicatriz, é ferida e não sara. O inimigo parasita em mim para sempre. Sou uma possessão. Um espírito baixado sobre minha dignidade abaeté. Sou um bicho como nenhum outro na mata. Um inimigo menos semelhante. Um excremento do branco no ventre de minha mãe. Sou a morte. Tenho essa cor grotesca do inimigo que vive no exterior de nossa divindade. Tenho essa prova grotesca de ser metade inimigo e de me ofender a mim mesmo.”

Honra possui o animal da vingança em seu corpo e mente. Para molhar as mãos na vingança, torna-se um guerreiro com a missão de guerra: matar os brancos que violaram sua mãe. Como guerreiro precisa matar os invasores e assar seus corações na fogueira. Para cumprir sua missão, prende a língua do inimigo para enfeitiçá-la em vingança: “O cadáver de todas as coisas está na língua. Naquilo que se pronuncia sobra tudo quanto foi, e a existência não se livra do cúmulo do que já passou. Para que cada palavra seja criadora, é também inevitável que saiba que sepulta dentro de si mesma.”

O grande conteúdo de “A Doença do Brasil” reside na linguagem desenvolvida por Valter Hugo Mãe. A forma com que o autor faz uso da língua portuguesa se revela a grande força do romance. Eleva a linguagem desenvolvida em seus livros anteriores em outra pele. O elemento revelador está na linguagem da história narrada próxima da poesia.

No posfácio do romance, Hugo Mãe deixa claro sua intenção pela linguagem poética: “Este não é o retrato de comunidade alguma que exista. É o meu poema que tem a ver sobretudo com o assombro, o preconceito e a maravilha que sobra em alguém que quer inventar uma hipótese por imaginação e exuberância. Não é minha intenção fazer antropologia, sociologia ou sequer história. Sou um coletor de palavras. Concebo verdades como se fossem vocabulares e aceito erros. Coloco-me diante de todas as coisas para catar o poema. É pelo poema, sua violência e seu fascínio, seu absoluto fulgor deitado sobre a realidade, que é pouco, que busco.”

Nascido em Angola, Hugo Mãe se mudou ainda pequeno para Portugal. Hoje pode ser considerado o escritor português mais lido no Brasil depois de José Saramago. Sua escrita pautada pela afetividade seduz os leitores de maneira própria. Apesar de ter publicado 15 livros de poesia, é mais conhecido por seus romances “O Filho de Mil Homens” (2011), “Desumanização” (2013), “A Máquina de Fazer Espanhóis” (2010) e “Homens Imprudentemente Poéticos” (2014).

Em “As Doenças do Brasil”, os fantasmas do personagem Honra, diante do coração de 187 anos de D. Pedro I, preferem fatiar o órgão e colocá-lo sobre brasas com pompas e honras: “A fome dos bichos é mais digna do que a ganância do branco.”

Imagem ilustrativa da imagem Na pele de outra pele: um olhar sobre a colonização portuguesa
| Foto: Reprodução

Serviço:

“As Doenças do Brasil”

Autor – Valter Hugo Mãe

Editora – Globo

Prefacio – Conceição Evaristo

Páginas – 208

Quanto – R$ 64,90