Morreu Godard, morreu Jean-Luc.

Sem ele, perdemos aquele sentimento um pouco inocente talvez, mas sempre contagiante, de que sim, o Cinema está vivo.

Godard foi o mais inventivo, polêmico, radical e inacessível entre os grandes. O adjetivo 'genial' muitas vezes é usado em tom exagerado e de forma gratuita, mas no caso de Jean-Luc era uma descrição mais do que apropriada.

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Um poema de Jean-Luc Godard

Não lembro exatamente qual foi o primeiro Godard a que assisti: "Alphaville" talvez.. "Acossado" provavelmente. Mas posso dizer com segurança que Godard era o cineasta mais desafiador que poderia encontrar numa sala escura..

Ele ainda preservava uma aura mágica dos grandes mestres, cujo último filme esperávamos como se fosse uma profecia a ser decifrada, um poema a ser relembrado, uma imagem que nos habitava.Me lembro muito bem da estreia do longa “Filme Socialismo” na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2010. Os ingressos começariam a ser vendidos a partir das 10h da manhã para a sessão logo mais à noite. Meia hora depois, os ingressos haviam se esgotado. E ver um Godard em uma sala de cinema era algo extremamente necessário, pois ele criava uma relação com o público completamente instigante a partir da mixagem do filme. Um som que deveria vir da caixa da direita, por exemplo, viria da esquerda. Um som que deveria ser suavizado surgia de forma estridente. Ele tornava concreta a máxima de John Cage - o ruído também é música.

Jean-Luc Godard: sua diferença com os demais cineastas é a de que era, sobretudo, um pensador
Jean-Luc Godard: sua diferença com os demais cineastas é a de que era, sobretudo, um pensador | Foto: AFP

FILÓSOFO DA LINGUAGEM

Sua diferença em relação aos demais cineastas é a de que Godard era sobretudo um pensador, um filósofo da linguagem que subverteu o cinema narrativo criando conceitos e técnicas que davam à estrutura de um filme a categoria de um pensamento vivo. Disse Jean-Luc: “Eu sou um pintor que trabalha com as palavras. Quero restaurar tudo, mixar tudo, e dizer tudo”. E era o que ele fazia: assistir a um filme de Godard é ver um pensamento em construção, uma voz interior que reúne traços da cultura erudita, da cultura pop, e uma contínua reflexão sobre a natureza da imagem.

Ninguém talvez tenha declarado tanto o seu amor pelo Cinema como Godard: “Você não faz o filme. O filme faz você”. O cinema era a "verdade 24 vezes por segundo", uma "forma que pensa", uma linguagem que amplia o mundo não por ser apenas um espelho, mas um reflexo improvável que só encontraríamos em um filme de Godard.

E Godard também filmou o amor. Seus filmes com Anna Karina são o testemunho de que o Cinema é uma arte autônoma: um rosto em um filme de JLG não é apenas um rosto.. é o mundo! “Um filme é como um diário pessoal, um caderno de notas ou um monólogo de alguém que tenta se justificar diante de uma câmera”.

Podemos dizer que Godard foi certamente o maior montador da História do Cinema, superando até mesmo Eisenstein e Hitchcock, dois mestres que ele tanto admirava. Ele redimensionou a ideia de filme ensaio, criando pulsões rítmicas entre imagem, som, palavra e ruído, que nos davam a impressão de estarmos sempre diante de uma nova obra. “Um cineasta só tem necessidade da câmera para registrar aquilo que ainda não conhece, que ainda não viu”.

Ninguém talvez tenha declarado tanto seu amor pelo cinema quanto Godard
Ninguém talvez tenha declarado tanto seu amor pelo cinema quanto Godard | Foto: AFP/ STR

Mais do que ver Godard, ama-se rever Godard. É uma obsessão do segundo encontro, de uma mitologia que se cria a cada revisão. Em 2012, há 10 anos, exibimos alguns de seus filmes em 35mm dentro da programação do Festival Kinoarte de Cinema: foi lindo ver em Londrina um público novo assistindo a Godard na sala escura, na tela grande, no formato original em película.Pois Godard não é um cineasta da frase sutil, do enquadramento natural, ou até mesmo da catarse aristotélica. Ele é um rebelde constante, um seguidor de poetas como Nicholas Ray e Roberto Rossellini que mostraram o cinema como uma forma de (des)conhecer o mundo, de desvelar o segredo oculto e precioso que há entre todas as coisas. Nem sujeito, e nem objeto. Godard filmava o “entre”, o inapreensível, o fluxo, a transição. 'Ser ou não ser’ era um dilema que ele desprezava: preferia a eterna impossibilidade de definição. Por isso pode-se dizer que, como ninguém mais, ele uniu Cinema, Poesia e Filosofia. Foi um poeta das imagens, um pensador da linguagem e um cineasta que reinventou a sua própria arte.

Em verdade Godard não morre.Seu desaparecimento aos 91 é um 'jump cut' inesperado, mas que alimenta uma utopia: onde houver Cinema de invenção, ali também estará Jean-Luc Godard!

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