Pela primeira vez no FILO, Festival Internacional de Londrina, com o espetáculo “Desfazenda — Me Enterrem Fora Desse Lugar”, o coletivo teatral O Bonde chega com todo o poder da palavra para os palcos do Teatro Ouro Verde. Premiados pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como melhor espetáculo on-line de 2021, em sua estreia como peça-filme, a obra dramatúrgica de Lucas Moura, se utiliza da “spoken word”: “O público tem se silenciado cada vez mais [ao assistir], a percepção é de total contemplação do que é contado através de uma história real, na década de 30, em um Brasil pós abolição da escravatura, e com 'spoken word' que é usado como linguagem”, explica o ator Jhonny Salaberg, 27 anos, que faz um dos personagens.

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“Spoken word”, traduzindo para o português, é “palavra falada”, uma forma de manifestação artística que ganha cada mais mais adeptos, em que poemas, contos, crônicas ou letras de música são feitos de forma recitativa, em “Desfazenda”, essa característica se dá quase que próxima ao canto do rap, com rítmo e lirismo. As vozes dos quatro personagens em cena se misturam e ecoam de maneira múltipla, como uma colagem ou um mix dentro do hip hop, entregando a mensagem artística ainda mais incisiva e precisa.

A história é contada através dos personagens, 12 (Jhonny Salaberg), 13 (Marina Esteves), 23 (Filipe Celestino) e 40 (Ailton Barros), quatro pessoas pretas que foram salvas da guerra ainda quando crianças por um padre branco, que nunca sai de sua capela. Assim, os quatro passaram a morar na fazenda do padre, onde realizam trabalhos diários, supervisionados por Zero, uma figura enigmática da trama.

Ao longo da narrativa é possível ver que os movimentos começam a mudar quando os porquês são questionados, em meio às badaladas do sino da fazenda que indicam os horários para oração ou início de trabalho. A guerra que se passa durante a narrativa, nunca atingiu a local, até que um estranho vulto chega e todo o silêncio é quebrado, revelando um grande segredo: “São anúncios do que já aconteceu e do que ainda acontece, ‘Desfazenda’ é um espetáculo que fala de um Brasil colônia com heranças neonazistas, discutindo um presente/futuro que repete fielmente um passado”, Salaberg.

"Desfazenda" trata do racismo desde o Brasil Colônia  até a contemporaneidade
"Desfazenda" trata do racismo desde o Brasil Colônia até a contemporaneidade | Foto: José de Holanda/ Divulgação/ FILO 2023

TIJOLOS COM SUÁSTICAS

“Desfazenda” é baseada no texto original de Lucas Moura: "Como criar um corpo negro sem órgãos", também responsável pela dramaturgia da peça, seu texto foi adaptado e transformado no roteiro atual do coletivo. A obra também é inspirada em uma história real, descrita no documentário “Menino 23 - Infâncias perdidas no Brasil”, de Belisario Franca, onde é narrada a descoberta de tijolos marcados com suásticas nazistas em uma fazenda no interior de São Paulo.

Considerada uma peça-filme, por carregar elementos do teatro e do cinema, a trama se compõe de muitas camadas sobre vivências atuais, por meio de referências a episódios emblemáticos, como o assassinato de George Floyd, do segurança João Alberto no supermercado Carrefour e o colapso da saúde em Manaus. Vivendo o personagem “12”, Jhonny reflete sobre a importância da peça estar nos palcos: “Há uma urgência em abordar temas etnicos-raciais em todas as produções artísticas porque o corpo negro e tudo o que ele carrega não é algo que está fora de uma sociedade [...] Não há arte universal, há recortes, e tudo o que foi estruturado e dito como convencional, não deixa de ser um recorte branco, então o teatro negro, antes de tudo, é uma das facetas do teatro brasileiro”.

O Bonde começou em 2017 com um jeito mais inusitado de se colocar em frente ao público, no palco, o microfone e o pedestal estão como elementos fundamentais na contribuição da criação. Durante as cenas, esses objetos ganham mais do que um poder utilitário, são pontos de força para ampliar ainda mais a importância da palavra: “Será nossa primeira participação no festival, a expectativa é de um encontro potente com público local, com possibilidades de trocas sobre o assunto que o espetáculo aborda, também oferecer nosso trabalho como ferramenta de reconstrução de novos imaginários”, diz o ator.

RAÍZES MUSICAIS

Com muita intimidade com a palavra, conhecida por sua participação no Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, companhia teatral que utiliza elementos da cultura hip-hop, e o SLAM, movimento de batalhas de poesia falada, Roberta Estrela D’Alva, 45, foi a escolha perfeita para assumir a direção do espetáculo. A atriz, MC, pesquisadora, diretora e roteirista, também divide a direção musical com a DJ Dani Nega, ambas envolvidas e atentas em busca de encontrar a melhor maneira de captar a audição e o olhar reflexivo de quem assiste: “Por isso a importância de falar sobre esses temas, recontar, imaginar, pois assim essas vozes são ouvidas, é uma luta sobretudo contra o apagamento, o silenciamento e a invisibilização”, diz Roberta.

São através de histórias, como o espetáculo “Desfazenda”, que é possível entender melhor a cultura e ensinamentos que formaram gerações, com visões que precisam ser revisitadas na atualidade para construir uma narrativa mais diversa com o resgate da memória de todos os povos, uma das maneiras de avançar como sociedade. “As pessoas se sentem tocadas em descobrir essa história que aconteceu há tão pouco tempo no nosso país. A peça fala sobre a quebra do silêncio que é provocada quando alguém começa a se questionar, uma relação direta com a emergência da juventude que se formou a partir da criação da política de cotas e que não aceita facilmente o que lhe é imposto”, reforça a diretora que já esteve no FILO, em 2003. "Tenho uma memória bonita do FILO, já estive com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, e é muito bom que uma companhia como O Bonde participar de um Festival tão longevo e importante. Espero que as pessoas possam sentir a pulsação da linguagem da peça, do spoken e se sintam inspiradas,”conclui.

Imagem ilustrativa da imagem FILO 2023 - A palavra é o espetáculo em “Desfazenda”
| Foto: José de Holanda/ Divulgação/ FILO 2023

SERVIÇO

Leitura dramática: “Desfazenda – Me enterrem fora desse lugar”

Data: Sexta-feira (23), às 20:30 I Sábado (24), às 20:30

Local: Cine Teatro Ouro Verde (R. Maranhão, 85 )

Classificação indicativa: 14 anos

Ingressos a 40 (inteira) e 20 (meia) no site do FILO ou na plataforma Sympla