Acho que é natural. Finalmente, após uma quarentena de 24 meses (os dois anos online foram pouco mais que protocolares focos de resistência à pandemia insidiosa), o Festival de Cinema de Gramado reabriu as portas para tripla celebração: os 50 anos de

vida muito útil da mostra, o retorno ao modelo presencial e a retomada do espirito de resistência da comunidade cinematográfica, impresso no digital.

E a consistente seleção de filmes concorrentes acabou prevalecendo sobre a louvação. Aniversário discreto nos bastidores, mas muita reflexão na tela do Palácio dos Festivais, gerando ótimos debates, nos quais uma vez mais tive o privilégio de atuar como mediador.

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O cinquentenário do Festival de Cinema de Gramado

Treze longas-metragens brasileiros e estrangeiros e 14 curtas brasileiros, com temáticas diversas, a maioria filmes fortes e instigantes. Violência policial e doméstica, crime organizado, drogas, questões de gênero e raciais, ecos da ditadura dos anos 60/70.

Entre os longas brasileiros, destaques para o acreano “Noites Alienígenas”, escrito e dirigido por Sergio de Carvalho, baseado em livro dele. Enorme e boa surpresa, a descoberta de um núcleo cultural no Acre, na região que pode se chamar de franjas ou periferia da Amazônia. Com dose certa que mistura xamanismo e realismo mágico (às vezes prevalecendo o tom semidocumental) nas fronteiras entre a cidade (Rio Branco) e a floresta , o filme registra o impacto da entrada de facções criminosas do Sudeste na região amazônica. E as consequências que impactam a juventude.

'Noites Alienígenas', de Sergio de Carvalho, está entre os longas concorrentes e registra o impacto da entrada de facções criminosas na Amazônia
'Noites Alienígenas', de Sergio de Carvalho, está entre os longas concorrentes e registra o impacto da entrada de facções criminosas na Amazônia | Foto: Divulgação

Juventude, resistência e esperança parecem a única saída. Elenco afinado, direção segura. O Dia dos Pais sempre acontece no calendário de Gramado, mas este ano foi a vez das mães. Nenhuma alegria, somente dor, tristeza e lamentações. A brasileira emblemática, e vivida com imensa carga dramática pela paraibana Marcélia Cartaxo , é “A Mãe” no longa do paulista Cristiano Burlan. Ela é Maria, mãe solteira vivendo na periferia sem lei de São Paulo. Tem um filho adolescente, Valdo, que uma noite não volta para casa. Depois de busca exaustiva, os traficantes locais contam para ela que o filho foi executado pela PM. Ainda assim, ela persiste sem sua busca. Dilacerante, o filme.

E ainda, duas mães estrangeiras , igualmente sofredoras. Do México vem Soledad, a angustiada mulher de “El Camino de Sol”. Seu filho de cinco anos é sequestrado (mas não se sabe por quem). Pedem um resgate. Ela (separada do marido) não tem de onde tirar. O recurso encontrado é sequestrar cães de pessoas com dinheiro para tentar juntar os 100 mil pesos para o resgate do filho. E da Argentina, a mãe Érica pensa que sua filha de 7 anos, Flor, está de férias com o pai, Pedro, de quem está separada. Mas... O diretor Néstor Mazzini constrói em 77 minutos um minimalista ensaio de tensão sufocante, sem mostrar qualquer violência . E o curta brasileiro “O Pato”, imerso em silêncio, dá seu recado sutil, mas não menos decisivo, sobre violência doméstica.

Os filmes listados acima surgem com boas chances de levar Kikitos na cerimônia de premiação no próximo sábado (20). Mas há vários outros que vem gerar acaloradas discussões do júri .

* O jornalista viajou a convite do Festival.

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