Os portugueses mataram os habitantes nativos do Brasil. Os religiosos também mataram. Os militares mataram os povos originários. Os fazendeiros também mataram. Os presidentes mataram os indígenas. Ministros, governadores e deputados também. Garimpeiros mataram, empresários igualmente mataram. Grandes corporações mataram, madeireiros também. Pessoas comuns também mataram.

A lista é enorme. Seja direta ou indiretamente, todo mundo matou ou continua matando os indígenas brasileiros.

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Mas de onde vem tanto ódio? De onde vem esse ímpeto em dizimar os povos originários do país? Por que esse ódio se perpetua ao longo de séculos? Que mal os indígenas fizeram à nação brasileira para serem sistematicamente eliminados? Por que os povos nativos despertam os piores preconceitos? Por que são encarados como atraso ao desenvolvimento do país? Por que são tratados como inimigos no próprio território que habitam há milhares de anos? Por que esse ódio continua vivo é os dias de hoje?

Não existe uma resposta objetiva para essas questões. Mas podemos arriscar a mais simples de todas: pelo simples fato dos indígenas possuírem uma visão de mundo e uma posição diante da existência diferenciada.

Em seu novo livro “Futuro Ancestral”, o pensador indígena Ailton Krenak segue sua missão de explicar essa visão e essa posição diferenciada: o mundo em que vivemos, o país em que vivemos, deve ser um lugar a ser compartilhado por todos seus habitantes – pessoas, plantas, animais, rios, montanhas, lagos, florestas, campos, nuvens, insetos, vento e tudo mais.

Nascido em 1953, no território da etnia krenak (região do vale do Rio Doce), Ailton Krenak pode ser considerado um dos principais ativistas dos movimentos socioambientais e de defesa dos direitos dos povos indígenas em atividade. Seus livros anteriores, “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” (2019) e “A Vida Não é Útil” (2020), venderam mais de 80 mil exemplares.

Lançado em dezembro pela editora Companhia das Letras, “Futuro Ancestral” segue o modelo de seus livros anteriores. Textos curtos de origem oral, todos oriundos de falas de Krenak em debates, palestras, lives, entrevistas e depoimentos organizados por Rita Carelli.

Com uma narrativa simples e acolhedora, Krenak realiza reflexões sobre coisas que, no fundo, já sabemos, mas que precisam ser constantemente relembradas: que a visão de mundo dos indígenas pode ajudar a salvar o planeta de uma série de problemas globais que vivemos hoje e que nossos filhos e netos e bisnetos devem viver de maneira mais acentuada no futuro.

Tudo começa com a evidência de como o “homem civilizado” se distanciou da natureza e, como isso, atrofiou seu entendimento das interações entre todos os seres vivos da Terra. E de como a ideia de que a cultura e o desenvolvimento sempre precisaram operar em oposição à natureza, se revelou uma ideia totalmente datada e restrita.

“Cidades, Pandemias e Outras Geringonças”, um dos cinco textos que integram o novo livro de Krenak, merece destaque. Nele, Ailton começa expondo sua percepção de que estamos passando de agentes ativos da realidade para meros consumidores da realidade. O processo de substituição da ideia de cidadão pela ideia de consumidor.

Em seguida reflete sobre nos distanciamos as florestas em nossas vidas urbanas funcionais. Uma floresta que, de tão distante, não temos mais condições de estabelecer intimidade. Pelo distanciamento, não temos mais condições de estabelecer uma afetividade e vínculos verdadeiros. Uma possível solução, para Krenak, seria trazer as florestas para perto das pessoas, para perto das cidades: “Como fazer a floresta existir em nós, em nossas casas, em nossos quintais? Podemos provocar o surgimento de uma experiência de ‘florestania’, começando por contestar essa ordem urbana sanitária ao dizer: eu vou deixar o meu quintal cheio de mato, quero estudar a gramática dele. Como eu acho no meio do mato um ipê, uma peroba rosa, ou um jacarandá? E se eu tivesse um buritizeiro no quintal?”

Talvez essa visão de mundo desperte risos, piadas e desdém até chegar ao ódio. Uma visão de mundo sem utilidade prática, empreendedora ou econômica. Uma visão de mundo e uma posição diante da existência diferenciada, que coloca a ideia de comunhão no lugar da ideia de disputa e competição.

Para quem deseja conhecer com mais profundidade essa visão de mundo dos indígenas, basta entrar de cabeça na leitura de “A Queda do Céu”, livro escrito em parceria entre o xamã yanomami Davi Kopenawa e o antropólogo francês Bruce Albert. Publicada originalmente na França em 2010, a obra foi lançada no Brasil em 2015 pela editora Companhia das Letras.

Serviço:

“Futuro Ancestral”

Autor – Ailton Krenak

Organização – Rita Carelli

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 128

Quanto – R$ 34,90 (papel) e 23,90 (e-book)