“A infância é uma prisão da qual não há fuga possível.” Esta frase parece ser a síntese de “Toda Cicatriz Desaparece”, novo livro de Rogério Pereira lançado pela editora Maralto.

A obra reúne 40 crônicas autobiográficas publicadas originalmente no jornal curitibano de literatura “Rascunho” ao longo dos anos. São narrativas que revisitam a infância fazendo uso de um olhar atento e sensível.

Fundador e editor do “Rascunho”, Rogério Pereira atuou como diretor da Biblioteca Pública do Paraná entre 2011 e 2019. Autor do romance “Na Escuridão, Amanhã” (2013), possui contos publicados em vários países.

Para o escritor Luiz Ruffato, responsável pela organização do livro, o autor “é da família de escritores que estão sempre remexendo em suas próprias feridas, que, singulares em sua manifestação, transformam-se, por conta da linguagem, em experiências comuns a um enorme contingente de pessoas”.

A seguir, Rogério Pereira fala sobre seu novo livro, áspero e acolhedor ao mesmo tempo, e de sua visão da infância como batalha feroz.

Existe uma atmosfera de melancolia na infância retratada em “Toda Cicatriz Desaparece”. Que infância é essa?

É a infância de um retirante, de um menino assustado com o novo mundo que se abria diante de seus olhos daltônicos. Um mundo distante da roça, da lerdeza rural, para uma terra motorizada, barulhenta, apressada, mesmo naqueles já longínquos anos 1980. É uma infância de descobertas, em especial da palavra escrita, da escola – que sempre esteve muito longe das mãos calosas da mãe, que pouco sabia ler e escrever. É também um tempo de pavor e de muito trabalho (comecei a trabalhar com cerca de 10 anos). Lembro de uma infância em que o trabalho rivalizava – e muito – com a ânsia de brincar, correr descalço, jogar futebol. Enfim, ser apenas criança, algo que não nos era possível.

No decorrer da leitura de “Toda Cicatriz Desaparece” o leitor pode entender o livro não mais como um volume de crônicas, ou de narrativas, mas como a autobiografia de uma infância. É isso mesmo?

Exatamente. Esta construção acabou acontecendo graças às escolhas de Luiz Ruffato. Ao optar pelo recorte dos textos sobre infância, a leitura do conjunto dá a forte sensação de que se percorre toda uma infância, com seus medos, sonhos, decepções e aventuras. São 40 narrativas em cujo epicentro gira esta fase da vida que nunca nos abandona, este espaço onírico e, ao mesmo tempo, terrível, para onde invariavelmente retornamos durante toda a vida.

Nas narrativas do livro você une a inocência da infância com a crueldade da própria infância. O que essa união representa?

Me parece que inocência e crueldade andam abraçadas na infância. As crianças são cruéis e inocentes em proporções semelhantes. Eu tive exemplos terríveis de crueldade doméstica, fui um animal encurralado pelo pavor de um pai violento e pela fé de uma mãe agarrada às barbas de Deus. É óbvio que não se pode comparar a crueldade infantil ao matar um sabiá à de um adulto espancando uma criança. Mas a infância embalada em nuvens e afetos só existe nos desenhos animados – ou nem lá, melhor dizendo. A infância é uma batalha feroz.

O protagonista dos textos de “Toda Cicatriz Desaparece” possui uma relação complicada com o pai expressa em frases fortes como: “É mais fácil amar um cão do que perdoar um pai.” Ou: “Dói menos odiar o pai quando se está feliz.” Que paternidade é essa?

Há nas narrativas a expressa vontade de combater a figura paterna, levando em conta um entorno envolto em violências e tristezas. Mas, para além disso, talvez haja uma nostalgia de uma relação que nunca houve: a de pai e filho. Não há representação de afeto, simplesmente porque nunca existiu. O que existe são nesgas de possibilidades, de uma tentativa de encontrar um espaço para o afeto, para o amor. Pais e filhos não precisam se odiar. Mas o amor também não é obrigatório.

O narrador de “Toda Cicatriz Desaparece” retrata a escassez de uma infância proletária como aprendizado. Você tinha a intenção de realizar um retrato social do país?

Objetivamente, não tinha esta intenção. Mas ao olhar para dentro da minha família, da minha história, me parece natural que surja um retrato de um microcosmos brasileiro. Minha família é um exemplar típico da família pobre brasileira, formada por analfabetos, alcoólatras, trabalho infantil, violência, escassez em todos os sentidos. Ao retratar minha família a partir de um olhar de um menino, acabei construindo certo retrato de um Brasil que perdura há muitas décadas.

Você considera que o daltonismo influenciou sua literatura?

Sou muito daltônico. Na infância, me considerava um ignorante cromático por desconhecer o daltonismo. Me achava um grande estúpido ao não enxergar as cores que tudo mundo enxergava. Acho que o daltonismo não tem influência sobre a minha literatura. Mas eu o utilizo como uma maneira de construir um personagem/narrador para as narrativas breves que escrevo. É quase um “autobullying”, uma forma de confrontar um mundo que sempre se mostrou pouco colorido, quase em preto e branco. Meu olhar daltônico tenta compreender uma vida em que as cores sempre estiveram deslocadas e desbotadas.

Serviço:

“Toda Cicatriz Desaparece”

Autor – Rogério Pereira

Editora – Maralto

Organização e apresentação – Luiz Ruffato

Páginas – 208

Quanto – R$ 44,90