PARATY, RJ - Adriana Calcanhotto subiu ao palco com 15 minutos de atraso se inclinando em reverência a um público meio impaciente: milhares de pessoas suando em bicas numa tenda rodeada por chuva na noite de quarta-feira (22). Era a abertura da FLIP.

E a artista começou saudando "a alegria como a prova dos nove", numa de suas músicas que fazem referência direta ao movimento modernista tão impactado pela homenageada do ano, Patrícia Galvão.

"Temos uma diferença", disse ela à plateia. "A Pagu largou a antropofagia e eu não. Em compensação, ela foi se dedicar às ideias comunistas, que eu larguei."

LEIA TAMBÉM

Poetas paranaenses apresentam novo formato editorial na FLIP

Autora traduzida por escritor de Londrina é destaque na FLIP

Na primeira hora de show, as prometidas saudações a Rita Lee, Gal Costa e Elza Soares - representantes posteriores da insubmissão de Pagu- foram referências oblíquas.

Houve um texto de autoria de Maria Bethânia, "Caras e Bocas", escrito para Gal em primeira pessoa; houve uma versão de "Sophisticated Lady", canção de Duke Ellington gravada por Elza sobre tradução de Augusto de Campos, também celebrado na festa.

Foi uma apresentação em ritmo lento, montada e extensamente roteirizada a pedido da FLIP com Cid Campos, filho de Augusto, que se apresentou com Calcanhotto. Ao fundo, projeções de Omar Salomão e Emilio Rangel misturavam fotos da cantora a desenhos de Pagu, uma compondo a outra.

Fazia tempo que uma cantora famosa não abria a Flip. A última vez deve ter sido a própria Gal, que cantou em julho de 2014 antes da festa que homenageou Millôr Fernandes.

É verdade que esta foi uma apresentação que extrapolou bem a música - a literatura deu o tom tanto na leitura de cartas de Pagu elogiando Clarice Lispector quanto em poemas da autora musicados por Cid e até numa pormenorizada declamação da lista de autores traduzidos por Augusto de Campos.

FORMATO ACADÊMICO

Logo antes do show, uma mesa de abertura com ar mais pesado de simpósio acadêmico abriu os trabalhos de homenagem a Pagu.

Era uma conversa entre o brasilianista americano David Jackson e a escritora Adriana Armony, com mediação da professora Eneida Leal Cunha.

Ele acaba de lançar volumes robustos que reúnem a produção jornalística da autora, um lado pouco conhecido em meio a seu prisma de personalidades. Já Armony vem publicar "Pagu no Metrô", mistura de relato romanceado sobre a temporada dela em Paris e a busca da própria pesquisadora por seus registros na França.

Leal Cunha terminou a mesa afirmando que todos sairiam dali com um "dever de casa", de ir atrás dos livros, e não foi o único termo que deu ao encontro um clima de sala de aula.

A professora levantou a hipótese de que o trabalho de Pagu como jornalista era onde a autora se fazia mais desenvolta, ao comentar a quente o tempo presente. Sua militância política foi um traço tão marcante de sua atuação quanto a literatura.

Alguns espectadores foram embora antes que a mesa se encerrasse, apressadas pelo barulho de trovão que anunciava a chuvarada que tomaria o resto da noite.

Esta Flip primaveril continua até domingo (26) em Paraty, com mesas que tomam a cidade da manhã até a noite entre programação principal e diversas casas paralelas.

Show de Adriana Calcanhoto abriu a FLIP, com homenagem a Pagu, escritora modernista que ainda hoje dá muito o que falar
Show de Adriana Calcanhoto abriu a FLIP, com homenagem a Pagu, escritora modernista que ainda hoje dá muito o que falar | Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

PAGU: MODERNISTA FOI UMA REBELDE COM CAUSA

SÃO PAULO, SP - Pagu já foi um nome escandaloso, um nome esquecido, um nome resgatado aos pedaços pela cultura pop e usado ao gosto do freguês para falar de feminismo, comunismo ou liberdade sexual. Virou música de Rita Lee e Zélia Duncan e batizou um bloco de Carnaval. Em 2023, Pagu, apelido de Patrícia Galvão, é a homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty.

Nascida em 9 de junho de 1910 na cidade paulista de São João da Boa Vista, Galvão ganhou a alcunha quando tinha 18 anos pelo poeta e diplomata Raul Bopp, em 1928. No mesmo ano, ele também teria apresentado a jovem ao casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922. O encontro mudaria os rumos da vida de todos eles e do movimento modernista.

Pagu contribuiria com a identidade do movimento ao converter a vanguarda artística em vanguarda política. Lúcia Teixeira, biógrafa de Pagu, publicou um artigo em que esclarece o papel politizante de Pagu no movimento de que, inicialmente, seria apenas musa e estandarte da liberdade sexual - e alvo de fofocas, já que Oswald deixou Tarsila para se casar com a jovem escritora.

"Ela e Oswald, ao aderirem ao Partido Comunista, deram tratamento literário à luta ideológica", escreve a biógrafa.

Pagu publicou em 1933, quando tinha 22 anos, o livro "Parque Industrial". Assinou com pseudônimo Mara Lobo por imposição do partido de que era militante.

O crítico literário Nelson Ascher enumerou as "várias exceções" a que a obra pertence, sendo "modernista e urbano, marxista e feminista", "desabusadíssimo na linguagem" e abordando questões que eram tabu tanto para a militância comunista quanto para o leitor burguês -duas categorias em que Pagu se enquadrava.

Esconder a autoria foi apenas uma das exigências do PCB a que Pagu se submeteria. No período em que era militante, foi privada de exercer o jornalismo e se lançou a uma vida precária e a jornadas exaustivas. Depois, como membro de um "Comitê Fantasma", chegou a ter que se prostituir para conseguir informações para o partido.

A "Autobiografia Precoce" escrita pela autora não foi para se exaltar, mas para tentar explicar quem era a seu segundo marido, Geraldo Ferraz. "Paixão Pagu", título usado em algumas edições do livro, é uma longa carta em que ela conta sua relação bombástica com Oswald, com o PCB, com o governo de Getúlio Vargas e até com o último imperador da China, Pun-Yi, uma amizade que lhe rendeu sementes de soja quando o vegetal não era cultivado no Brasil.

Teixeira, que lança esta semana na Flip seu quarto livro sobre a autora, "Os Cadernos de Pagu: Manuscritos Inéditos de Patrícia Galvão", conta que começou a reunir os cadernos de seu acervo por revelarem sua complexidade e "o quanto ela reviu a sua trajetória, para que, mais uma vez, o público dos estudiosos pudesse dar continuidade ao papel de entender sua dimensão, sua generosidade".

Desiludida, Pagu foi expulsa do PCB em 1940 por ser dissidente trotskista, depois de quatro anos na prisão. Patrícia Galvão é considerada pela biógrafa a primeira mulher a ser presa política no Brasil, em 1935.

Com Ferraz, seu segundo marido, ela criou o Suplemento Literário do Diário de São Paulo em 1946. Tentou se lançar à política pouco depois, já no Partido Socialista Brasileiro, mas não foi eleita. Nesse período, também traduziu de forma pioneira nomes importantes da literatura como Eugene Ionesco e Octavio Paz. Morreu aos 52 anos de câncer no litoral paulista, em Santos.