O aborto pode ser considerado um dos grandes tabus da sociedade brasileira. Mesmo sendo um tabu, todo mundo tem uma opinião, ou um palpite, sobre o assunto. Principalmente os homens.

Existe a visão do pastor, a ideia do dono da padaria, o palpite no motorista de caminhão, o dogma do padre, o ponto de vista do encanador, a hipótese do torcedor do Corinthians, a tese do juiz, o pitaco do vereador, o conceito do vendedor de motosserra, o credo do deputado e a perspicácia do pescador.

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Também existe o juízo do plantador de soja, o conselho do youtuber, a sensação do homem do carro da pamonha, as suspeitas do policial, a tese do gerente de banco, a suposição do jogador de truco, a conjectura do marechal e o pressuposto do adestrador

de cães.

Existe também a apreciação do médico, a convicção do cozinheiro, o parecer do cantor sertanejo, a afirmação do taxista, a avaliação do tio do whatsapp, a concepção do bombeiro, a posição do peão e a avaliação do operador de empilhadeira.

A escritora francesa Annie Ernaux oferece uma perspectiva completamente diferente da visão masculina em “O Acontecimento”, livro recém lançado pela editora Fósforo. A obra traz as memórias, em tom de depoimento, da autora quando tinha 23 anos e realizou um aborto clandestino.

Annie Ernaux: "Se eu não relatar minha experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo”
Annie Ernaux: "Se eu não relatar minha experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo” | Foto: Divulgação

VIA CRUCIS

Era o ano de 1963. Annie Ernaux estava terminando faculdade e começando a trabalhar como professora. Após encerrar um efêmero namoro, descobre uma gravidez inesperada. Optando por interromper a indesejada gravidez, enfrenta uma solitária e

verdadeira “via crucis” de sofrimentos e humilhações. Na época o aborto era criminalizado no França. A legalização do aborto ocorreu no país apenas em 1975.

Ernaux precisou de mais de quatro décadas para conseguir escrever sobre o acontecido. Ao longo de seu relato, ela se questiona sobre como e por que escrever sobre uma vivência tão silenciada: “Pode ser que um texto como esse provoque irritação, ou repulsa, ou seja considerado de mau gosto. Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescindível de escrevê-la. Não existe verdade interior. E, se eu não relatar minha experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo.”

Muito além de pensar sobre os motivos, fatores e contextos que a levaram tomar a decisão pela interrupção da gravidez não desejada, ou não possível, Ernaux apresenta sua solitária e desesperada caminhada em busca do aborto. A consulta por médicos que lavam as mãos, a procura de alguém que conhece alguém que pode auxiliá-la clandestinamente, o empréstimo de dinheiro para pagar a conta, o processo traumático e de risco de infecção, o medo de ser descoberta, a necessidade de que tudo acontecer em surdina, as consequências de um processo clandestino mal realizado que termina no pronto-socorro de um hospital público, a violência médica dentro do ambiente hospitalar, a colocação da própria vida em perigo por uma escolha sobre o próprio

corpo.

“O Acontecimento” é o relato de algo que aconteceu na França de 1963 e que muito se assemelha ao que acontece silenciosamente no Brasil de 2022. Nas palavras da autora, “era impossível determinar se o aborto era proibido porque era ruim, ou se era ruim porque proibido. Julgava-se de acordo com a lei, não se julgava a lei.”

Em seu relato, Ernaux apresenta o aborto a partir da perspectiva da parte mais envolvida no assunto: a perspectiva da mulher que decide por não manter uma gravidez indesejada. Obra corajosa, “O Acontecimento” revela a realidade do aborto sem filtros.

Uma experiência vivida por milhares de mulheres de maneira silenciosa e traumática. Para a autora, relembrar sua experiência de 40 anos atrás e torná-la pública, pode impulsionar uma nova perspectiva sobre a moralidade do aborto: “Justamente porque

nenhuma interdição pesa mais sobre o aborto na França que posso, deixando de lado o senso comum e as fórmulas necessariamente simplificadas, impostas pela luta das mulheres, enfrentar, na sua realidade, esse acontecimento ‘inesquecível’.”

Annie Ernaux nasceu em 1940. Atuou como professora de literatura ao longo de décadas. Foi contemplada com quase todos os prêmios literários da França. Entre seus livros publicados no Brasil destacam-se “O Lugar” e “Os Anos”, ambos lançados pela

editora Fósforo. Numa adaptação do cineasta Audrey Diwan, “O Acontecimento” (“L’Evenément”) começou a ser exibido nos cinemas na semana passada.

SERVIÇO:

“O Acontecimento”

Autor – Annie Ernaux

Editora – Fósforo

Tradução – Isadora de Araújo Pontes

Páginas – 80

Quanto – R$ 54,90

Imagem ilustrativa da imagem A mulher diante de um tema polêmico: o aborto
| Foto: Divulgação

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