Joel está sem dinheiro, sem casa e sem trabalho. Desolado, decide colocar fim na própria vida. Escolhe um edifício comercial em Copacabana e sobe até o décimo andar. Quando está prestes a pular da janela, inesperadamente começa um panelaço contra o presidente. Todas as pessoas do lugar se dirigem às janelas para protestar batendo panela.



Com a tentativa frustrada, Joel começa a descer as escadas do prédio tentando encontrar uma janela deserta onde consiga pular sossegadamente. Só encontra tranquilidade no quarto andar, mas fica entalado na janela basculante. Tentando despencar, perde os sapatos, rasga a camisa e fica descabelado. Quando finalmente consegue encolher a barriga e passar pela janela, um pastor aos brados de oração o agarra pelo pé.




Apesar de tudo, ao som de panelaço e preces, Joel consegue se desvencilhar do pastor e se jogar janela abaixo. Mas cai sobre a Kombi de um verdureiro estacionada a rua. Com a queda amortecida, Joel sobrevive com algumas fraturas nas pernas. No hospital, a primeira visita que recebe é a do humilde verdureiro cobrando os estragos da Kombi.




Essa história que mistura tragédia e comédia aparece nas primeiras páginas do novo romance da escritora carioca Martha Batalha, “Chuva de Papel”. Lançado pela editora Companhia das Letras, a obra narra a trajetória de Joel, um jornalista policial da velha guarda boêmia que fez carreira estampando nos jornais os crimes da cidade do Rio de Janeiro das décadas de 1970 e 1980. Decadente, obsoleto e deslocado, o personagem não consegue se ajustar em uma cidade na qual não possui mais lugar.




Ao sair do hospital, sem dinheiro e ter onde morar, Joel acaba se hospedando de favor na casa da tia de um conhecido. E assim cai de muletas e de pára-quedas em um pequeno quarto na casa de Glória, uma mulher severa e desbocada. Justamente no período de início da pandemia do covid-19.




Isolados no mesmo apartamento, Joel e Glória, entre trancos e barrancos, precisam conviver com suas diferenças. A personagem Glória ganha projeção em “Chuva de Papel” ao revelar sua história através de suas memórias que tenta escrever em cadernos nunca revelados.




Glória traz consigo a dificuldade das mulheres se colocarem no mundo com voz própria. Mãe solo que sofreu abusos de todos os tipos, descobre por si que poderia ter uma voz, que vive com uma voz abafada pela vontade masculina.




Em seu mundo restrito, Glória percebe que estava inventando um feminismo que já existia antes dela: “Que era a minha voz e o meu desejo, e as minhas possibilidades, que eram poucas mas eram. O meu feminismo, como um desenho que só eu podia fazer, uma receita que teria exatamente o meu tempero. Sozinha na sala, eu me senti parte de algo maior, ao me dar conta da injustiça da invenção, porque, naquele momento, e antes, e depois, outras mulheres que viviam para dentro dessas janelas, nos mercados, nos pontos de ônibus, todas essas mulheres tinham inventado, estavam inventando ou iriam inventar o feminismo. E me pareceu errada a perda de tempo e de energia, a perda de vida, mesmo, numa invenção que se dava de novo e de novo, e ainda mais errado ser esse o final feliz, porque tantas outras, a maioria, eu me dei conta, passariam pelo mundo sem saber dessa voz, ou com uma vaga noção de que existia, mas sem poder experimentá-la, como um bem.”

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Ao colocar a personagem Glória tentando escreve um livro para conseguir voz no mundo, Martha Batalha resgata seu primeiro romance, “A Vida Secreta de Eurídice Gusmão”, publicado em 2016. Livro que arrebatou uma legião de leitores, traz a trajetória de Eurídice, uma dona de casa exemplar, dedicada ao marido e aos filhos, vivendo no Rio de Janeiro das décadas de 1940 e 1950. Sem voz própria e submissa à voz do marido, Eurídice também resolve escrever um livro como tentativa de ter sua própria voz.




Tanto em “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, como em “Chuva de Papel”, Martha Batalha elege a escrita como instrumento contra a invisibilidade das mulheres.

Serviço:

Imagem ilustrativa da imagem A invisibilidade das mulheres
| Foto: Divulgação
“Chuva de Papel”Autor – Martha BatalhaEditora – Companhia das LetrasPáginas – 226Quanto – R$ 64,90 (papel) e R$ 34,90 (e-book)