No dia 10 de junho de 1982, aos 37 anos, desaparecia o diretor, dramaturgo, roteirista e ator alemão Rainer Werner Fassbinder (1945-1982). Ele que não acreditava no passado, no presente, e nem no futuro. Ele que um dia disse: “Não existem acontecimentos reais. O verdadeiro é o que vem da arte”. Ele que dirigiu 45 filmes entre 1966 e 1982. Ele, que ao lado de Werner Herzog e Wim Wenders, é um dos maiores nomes do cinema alemão no Pós Guerra.

Conheci o seu universo a partir da sua última obra: “Querelle" (1982), um dos raros filmes de Fassbinder disponível em VHS na Londrina dos anos 1990. Já conhecia a estética de Jean Genet (1910-1986) e me apaixonei pela atmosfera de subversão que RWF conseguiu criar em um estúdio. O realismo, em Fassbinder, aliás, sempre me pareceu mais uma questão de atmosfera poética do que uma tentativa de reconstrução do natural.

Em 1997, quando me mudei para Londrina, o grupo Proteu ainda estava em cartaz com a peça: "Jennifer - O Amor é mais frio que a Morte". O texto, uma adaptação do diretor Roberto Lage a partir do original "Os Amores Abandonados de Frederick R.", de Randy Buck, era contagiante: mostrava os bastidores das produções em que Fassbinder vivia, alternando relações de trabalho e pessoais. Na montagem, a única do Proteu a não ser dirigida por Nitis Jacon, estavam dois nomes centrais do teatro londrinense: a atriz Maria Fernanda Coelho (que promoveu o retorno do Proteu em 2019), e o ator Remir Trautwein, o querido Mi, que nos deixou há 3 anos. Havia nesta peça uma sensação mista: uma potência criativa infinita e uma crise desoladora que transformava o ambiente criativo em uma consciente aproximação ao abismo. Essa é para mim a melhor síntese do universo Fassbinder.

Comecei a me interessar mais pela obra de RWF ao assistir a "O Medo Devora a Alma” (1973), uma história de amor totalmente inusitada entre uma alemã mais velha e um imigrante negro. O tom que Fassbinder imprime ao filme atinge um equilíbrio raro entre crítica social e lirismo ríspido. "Berlin Alexanderplatz” (1979/1980), série de TV de 15 horas, pude ver no cinema, em cópias em 16mm, em uma das edições da Mostra Internacional de São Paulo. É um trabalho de fôlego que reforça uma das características centrais de RWF - a obsessão pelo trabalho: “Eu tenho uma compulsão não muito clara, difícil de ser explicada, que me faz produzir coisas, e eu só sou realmente feliz quando produzo coisas, e este é o meu vício, se você quiser assim”.

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Rainer Werner Fassbinder: sua paixão pelo cinema se equiparava à sua paixão pela vida
Rainer Werner Fassbinder: sua paixão pelo cinema se equiparava à sua paixão pela vida | Foto: Acervo: Deutsches Filminstitut

O meu filme predileto, no entanto, é "As Lágrimas Amargas de Petra von Kant” (1972). Na peça e no filme, acredito que ele tenha conseguido encontrar uma mistura muito original de melodrama rasgado e ensaio político. O amor entre Petra e Karen não é apenas um sentimento: é uma relação de poder, antes de tudo, e uma relação de consumo. A artificialidade do cenário oferece ao filme um caráter atemporal: estamos no universo de Petra, a estilista, mas na verdade avançamos para dentro de um pesadelo: “A partir do momento em que não se decidiu viver numa ilha deserta, não se decide mais nada”.

A montagem teatral desse texto veio a Londrina nos anos 1980. Me lembro do amigo Francelino França, crítico de teatro da Folha de Londrina, recordando passagens célebres dessa montagem a partir das atuações de Fernanda Montenegro, Renata Sorrah e Juliana Carneiro da Cunha.

"O Casamento de Maria Braun” (1978) é outra obra máxima, na qual Hanna Schygulla consegue encarnar uma personagem de Fassbinder em potência máxima. Ela é sedutora e implacável ao mesmo tempo, em sintonia com as heroínas da Hollywood clássica dos anos 1940 que tanto seduziam RWF. Na filmografia de RWF, visualmente, há obras incríveis também como "O Desespero de Veronika Voss” (1981), “Despair" (1977), “Lola" (1981) e "Lili Marlene” (1980). E há filmes singulares, com o seu ritmo próprio, como "Precauções diante de uma Prostituta Santa” (1970) , “Whity" (1970), entre outros.

O que fica de Fassbinder, após 40 anos de sua morte, é a sua paixão pelo cinema, que se equiparava à sua paixão pela vida. Filmar era a única forma possível de vida para ele: “A primeira vez que eu rodei uma cena - este momento foi mais importante que o melhor orgasmo que eu já tive na vida". O seu universo é verdadeiro justamente por ser extremamente fantasioso e pessoal. Com o seu desaparecimento, o cinema perdeu enquanto provocação e sonho, e inevitavelmente, se tornou menos impulsivo: “O amor é mais frio que a morte. Mas o Cinema é mais quente que a vida”. Viva Fassbinder!