Nos últimos meses de 2020, 55,2% dos lares brasileiros, ou 116,8 milhões de pessoas, conviveram com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020 e 9% deles vivenciaram insegurança alimentar grave, isto é, passaram fome, revelou o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

Imagem ilustrativa da imagem Indústria pede flexibilização de data de validade de alimentos
| Foto: Gustavo Carneiro

Ao mesmo tempo, segundo a Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), um estudo conduzido pela Embrapa em 2018 aponta que uma família média brasileira desperdiça quase 130 kg de comida por ano, ou seja, 41,6 kg por pessoa.

O volume impressionante de comida desperdiçada em um país que é um dos maiores fornecedores de alimentos do mundo incentivou a indústria a fazer propor uma mudanças nas regras que estabelecem a data de validade dos alimentos. O objetivo é permitir que produtos vencidos, mas ainda seguros para ingestão, possam ser consumidos.

A proposta da Abia é semelhante ao modelo adotado nos EUA, o "best before", ou "consumir preferencialmente antes de". "Trata-se de um conceito regulatório que traz uma nova abordagem sobre o prazo de validade de alguns alimentos, indicando um período mínimo em que um produto mantém seu sabor e seu valor nutricional, se armazenado de forma adequada e com a embalagem fechada", explica a associação. "No entanto, se esse prazo expirar, não significa que o alimento não esteja mais seguro para o consumo. A ABIA vê o 'Best Before' com entusiasmo: é mais uma alternativa no combate ao desperdício de alimentos", continua a entidade.

O conceito é válido para alimentos "shelf stable", ou seja, que se mantém estáveis em temperatura ambiente, como macarrão, conservas, grãos, sucos de frutas, leite UHT, que possuem atividade de água baixa, que passam por processo de produção de esterilização, ou que são embalados a vácuo, esclarece a Abia. Produtos altamente perecíveis, como carnes in natura, leite pasteurizado ou queijos frescos, por exemplo, não podem usar este conceito.

Em um evento da cadeia nacional de abastecimento, realizado pela Abras (Associação Brasileira de Supermercados) no mês passado, a ministra Tereza Cristina afirmou que o governo federal iria criar um grupo de trabalho para avaliar proposta de flexibilização da regra que trata da validade de alimentos no Brasil.

"A gente poderia fazer uma adaptação, sem precarizar nada. Podemos rever uma série de fatores e gargalos, principalmente em relação à validade dos nossos alimentos. A pandemia nos trouxe esse tema de maneira perceptível, temos que agir rapidamente", disse ela na ocasião.

Em levantamento realizado no mês de maio, a Abras registrou perdas de R$ 7,6 bilhões, ou 1,79% sobre o faturamento bruto de 2020, no setor supermercadista. Dentre os fatores que impulsionaram as perdas, a validade vencida é o principal. "A Apras enxerga uma grande importância nessa proposta (do best before), que além de reduzir o desperdício, vai fomentar as ações sociais de combate à fome", disse o superintendente da Apras (Associação Paranaense de Supermercados), Valmor Rovaris.

Para a presidente do Sincabima (Sindicato das Indústrias de Cacau e Balas, Massas Alimentícias e Biscoitos de Doces e Conservas Alimentícias do Estado do Paraná), Eloisa Helena Orlandi, é missão da indústria cumprir com o seu papel social. "O Brasil se encontra entre os dez países que mais desperdiçam alimentos no mundo, e é um paradoxo num país que é celeiro de alimentos no mundo, 5% da população morrer de fome. A população que padece de fome vai buscar alimentos no lixo. Quer lugar mais funesto para isso?"

'Temos a cultura de que o prazo de validade é uma bomba relógio'

Muito do desperdício de alimentos no País se deve à questão cultural, opina Álvaro César, professor do curso de Engenharia de Alimentos da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), campus Curitiba. "Por conta do prazo de validade, temos um desperdício muito grande de alimentos no Brasil. Isso um pouco porque temos a cultura de que o prazo de validade é uma bomba relógio - passou da meia-noite daquele dia, o produto perde a validade. E as coisas não são bem assim."

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| Foto: Gustavo Carneiro

Segundo ele, o processo de degradação de um alimento é um processo contínuo e lento, que se inicia logo que ele é embalado.

Por este motivo, as indústrias já estabelecem, por convenção, uma margem de segurança aos seus produtos, explica a presidente do Sincabima. "As indústrias no geral colocam uma margem de segurança no vencimento exatamente porque entende que é a deterioração do alimento é um processo, e não uma coisa que hoje está bom e amanhã está ruim. Acredito que cada setor da indústria de alimentos monitora o prazo de validade de forma que dê uma pequena margem de segurança para esse período de transição."

Na fábrica de produtos da batata-palha, batatas ondulas e farofas Pratic Leve, de Ibiporã, a data de validade é determinada a partir de uma análise de estabilidade físico-química que garantem a segurança alimentar e a qualidade sensorial do produto, explica o proprietário Rogério Chineze. Mas a data é firmada com uma margem de segurança, ele continua. "Se o produto não foi exposto à luz, a um ambiente quente e úmido, vai ter uma estabilidade boa mesmo depois de vencido."

Mesmo após a data de validade, alguns produtos continuam seguros para consumo, mas perdem cor, sabor ou crocância, por exemplo. Por isso, não são adequados para venda. "Entre os snacks, temos aqui um laboratório em que abrimos amostras de tudo o que foi produzido durante um período após o vencimento para verificar a integridade. Tem produto com validade dois, três meses acima e não ofereceu risco à integridade do consumidor, mas se percebe que o sensorial já modificou. É um produto que não vai fazer mal, mas não vai agradar o paladar."

Quando os produtos vencem na prateleira do supermercado, eles retornam à indústria. As embalagens plásticas vão para a reciclagem e o alimento é destruído ou destinado para a indústria de rações, conta Chineze. Supermercados e indústrias firmam acordos para "dividir" o prejuízo. No caso da Pratic Leve, o produto vencido é substituído por outro, afirma o proprietário.

O produto com prazo de validade expirado e devolvido, por outro lado, poderia alimentar os necessitados, opina Chineze, desde que mantidos seguindo as recomendações de armazenagem que constam na embalagem.

"Alimentos enlatados, conservas em vidros, alimentos tremendamente secos como macarrão, biscoitos, salgadinhos têm risco muito pequeno e podem ser considerados bastante seguros além do prazo de validade. Eles vão perder cor, sabor, e eventualmente terão algumas alterações sensoriais, mas não ficarão impróprios para consumo a ponto causarem dano ao consumidor", explica o professor César.

'Decisão não pode ficar na mão do consumidor'
O professor da PUCPR, Álvaro César, ressalta entretanto que deixar na mão do consumidor a decisão de consumir um alimento vencido ou não pode ser arriscado. "A gente tem que se preocupar, por outro lado, com as milhares de pessoas que morrem por intoxicação alimentar." Categorias de alimentos com alto teor de umidade, que precisam de refrigeração e têm um tempo de vida bastante curto, como carnes e queijo branco, podem representar um grande risco ao consumidor quando contaminados com microorganismos patogênicos.
"Tem que trabalhar um meio termo, onde a legislação avance e possa aproveitar alimentos com o mínimo impacto à saúde do consumidor. Aqueles que têm impacto, precisam ter outros mecanismos e não podem jogar a decisão na mão do consumidor", salienta César.
A Abia esclarece que o modelo do "best before" deve ser obrigatoriamente vinculado a rígidos programas de qualidade, tais como análise de pontos críticos de controle e boas práticas de fabricação, principalmente em relação aos aspectos microbiológicos. "Uma vez observados os fundamentos do Best Before, não há risco sanitário. O regulamento deve estabelecer claramente o conceito, além de definir os programas adicionais de segurança do alimento (Food Safety) e as categorias que poderão adotá-lo."
E só flexibilizar a data de validade também não é a solução, afirma o professor - é preciso incutir a cultura da segurança dos alimentos em todos os elos da cadeia, desde a universidade, passando pelas agência regulatórias, pela indústria, pela cadeia de distribuição, até chegar ao consumidor. Até porque um alimento pode estragar mesmo dentro do prazo de validade, se transportado ou armazenado de forma inadequada.
A indústria alimentícia também teme que pessoas usem de má-fé para processarem as empresas por terem consumido produto vencido. "Para que isso funcione, é importante que exista jurisprudência e proteção para a indústria. O fabricante não pode ficar à mercê do consumidor", comenta Eloísa Orlandi, do Sincambima.

Modelo 'best before' fere Código de Defesa do Consumidor, diz Procon-LD

Para o diretor-executivo do Procon-Ld (Núcleo Municipal de Proteção e Defesa do Consumidor de Londrina), Thiago Mota, a flexibilização da data de validade dos alimentos mostra-se "temerária". "O prazo de validade dos alimentos é fixado seguindo normas técnicas, definidas a partir de testes laboratoriais. São inúmeros testes para determinar o prazo para consumo seguro dos alimentos, dentro dos padrões de qualidade. Após o prazo de validade, o produto perde sua integridade e fica sujeito a diversas alterações, tais como cor, textura, sabor e presença de microorganismos, o que pode trazer consequências danosas à saúde do consumidor."

Por este motivo, ele afirma que a flexibilização fere o CDC (Código de Defesa do Consumidor) por não observar o direito básico à informação correta, clara, precisa e ostensiva acerca do prazo de validade e possíveis riscos à saúde do consumidor, e por transferir ao consumidor o ônus de averiguar as condições do alimento e sua adequação para o consumo.

"O modelo 'best before' mostra-se impreciso quanto ao prazo durante o qual o produto permanece adequado e seguro ao consumo", diz o diretor-executivo. "No caso de utilização deste modelo, o direito à informação do consumidor é primordial. Teriam que ser esclarecidos quais os nutrientes que se perderia após a data fixada para que o consumidor pudesse de maneira efetiva optar por ainda adquirir o produto ou não, é preciso que o consumidor saiba de quais nutrientes está abrindo mão para possa exercer uma escolha consciente. Além disso, deve ficar claro qual o limite para o consumo seguro do produto, essa é uma obrigação do fornecedor, ele é quem deve informar sobre os riscos do consumo." (Com Agências)

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