Trabalhei por mais de quinze anos em diversas faculdades privadas, a maioria hoje extinta. Guardo comigo, para fins de aprendizado e cultivo da memória, somente os bons momentos. Os tenebrosos, que foram inúmeros, lancei ao limbo, ciente de que o passado pode ser iluminado no presente. Reescrever a própria história é tarefa de quem deseja ter futuro.

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Diferentemente destes tempos de tantas inimizades fáceis, havia naquela época gente lúcida com quem conversar. Entendo por lucidez uma ampla gama de possibilidades: desde um povo bem-humorado que me fazia rir em meio à galhofaria até alguns exemplares dignamente humanos que me incitavam à reflexão. P. (vou chamá-lo assim) era uma dessas amizades frutíferas, do tipo que invitava um papo rico, que me desafiava, me colocava à frente de desafios ao pensamento e à ação.

P. era um conservador. Eu brincava que ele era meu “amigo de direita”. Ele reclamava. Acusava-me de “esquerdista”. Ríamos juntos. No fundo, sabíamos que isso não era relevante à nossa convivência. Acima de tudo, éramos democratas, partíamos de pressupostos semelhantes, admirávamos a longa travessia da história e estávamos sintonizados na busca por caminhos justos de paz e prosperidade. Divergíamos, é claro, mas colhíamos bons resultados de nossas diferenças. P. me convidava a ver o mundo de outras perspectivas. Isso é sempre bom.

Pude ouvir de P. que eu também o provocava, levando-o a inquirir as próprias convicções. Era comum que passássemos horas na sala dos professores, trocando ideias, sorrindo, “tirando sarro” um do outro, tudo de modo respeitoso, alegre, desafeito àquele ambiente em que o debate era desestimulado, apesar de ser supostamente um espaço acadêmico. Na verdade, a turma estava mais preocupada em sobreviver, receber seu salário, ir embora mais cedo, alcançar uma alternativa de emprego o quanto antes. P. e eu, no entanto, sabíamos não estar condenados àquilo. Algo nos dizia que o amanhã reservava distintos destinos para nós. É essa parte prodigiosa que mantenho viva.

O fundamental para mim e para P. eram os alunos. Eles representavam nosso alvo, a única razão pela qual valia a pena estar ali. Assim como P., tive alunos excelentes, que tornavam tudo menos dramático. P. e eu partilhávamos muitas estratégias pedagógicas, conversávamos sobre nossos métodos docentes, nossas satisfações recolhidas em sala de aula. Nós, P. e eu, falávamos do essencial numa relação de ensino/aprendizagem: o crescimento mútuo entre mestres e aprendizes. Visto à distância, cresci muito naqueles anos; não obstante o prejuízo profissional inevitável, o saldo é de histórias ricas para lembrar, compartilhar e das quais extrair lições de vida.

P. ficou no passado. Nunca mais o vi. Não sei por onde anda nem o que está fazendo. Acredito, contudo, que esteja feliz, contando histórias, lutando contra o mal-estar que ora nos envolve e castiga. Como ele sempre dizia, “não percamos de vista o que há de melhor em nosso coração”. Estou atento, P. Saudade mesmo.

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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