Poucos dias atrás, um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que o Brasil precisava de um radical choque de Iluminismo. De imediato, surgiram os famosos “memes” contra a sentença. Um deles chamou a atenção: ao lado da foto do ministro acantonado por sua própria fala num balão de revista em quadrinhos, figurava uma guilhotina à espera de nova decapitação.

Imagem ilustrativa da imagem O riso dos que vivem no inferno
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Imagino que o criador da peça de “humor” tenha se indisposto tanto com a palavra “radical” quanto com a referência ao “Iluminismo”, um dos episódios criadores das sociedades modernas.

Radical, afinal de contas, é aquele que não respeita a família, a fé cristã e os patrióticos “sujeitos de bem”. Já o Iluminismo nada mais foi do que a perversão da ordem monárquica, estável e “natural” do mundo. O “espírito das luzes” foi uma espécie de serpente do tempo histórico: em vez de seduzir um indivíduo, ludibriou a consciência aristocrática da humanidade.

Relendo José Guilherme Merquior (1941-1991) – um autor que a esquerda e, principalmente, a direita deveriam estudar mais –, notei quanto até mesmo os velhos “whigs” ingleses, protagonistas de um novo ideal liberal entre os séculos 18 e 19, pareceriam subversivos no Brasil contemporâneo.

Merquior, em seu monumental “Liberalismo: antigo e moderno”, destaca que os “whigs” defendiam o latitudarismo moral, ou seja, a certeza de que existem e são legítimos muitos modos de viver e ser feliz; proclamavam o individualismo e cerravam fileiras contra as visões organicistas de sociedade; exigiam a constituição de um governo responsável, aberto à prestação pública de contas; e insistiam na associação entre economia livre e esforços comuns para a criatividade produtiva e o trabalho cooperativo – leia-se: crença prudente na ciência e no progresso.

Tudo isso parece estar contra a parede. Se é verdade que o progresso e a ciência não são infalíveis nem têm condições de prescrever condutas de felicidade para todos os seres humanos, é inquestionável que suas conquistas ampliaram os horizontes de vida e possibilitaram uma sociedade mais afeita a interações e mútuos aprendizados. Desprezar a razão é atitude conflitiva sem causa. Só quem ganha com isso são os fanáticos desprovidos da habilidade de pensar.

Hannah Arendt (1906-1975), em seu famoso juízo crítico sobre Adolf Eichmann, acertou em cheio quando afirmou que, convencido de que só fazia o que lhe ordenavam, o criminoso nazista abdicava da reflexão crítica e se entregava a uma “obediência cadavérica”. A morte de milhões de seres humanos foi a consequência desumana do não pensamento de Eichmann, assim como as reiteradas ameaças à democracia no Brasil contemporâneo, alinhadas com o desdém aos valores iluministas e liberais, podem conduzir o país a um desfecho trágico.

Diante de tanta irracionalidade no debate público (a palavra “debate” talvez nem faça muito sentido neste momento), sinto-me um “whig” oitocentista. Por acreditar na pluralidade das formas de vida e defender que governos sejam prudentes e inteligentes, arrisco-me a pertencer ao passado. Ao rejeitar arroubos totalitários e relações indecentes entre poder, milícias e sujeitos que abrem mão de pensar, vejo-me a caminho de um campo de extermínio.

Hitler e Stalin sorriem no inferno. E dizem: “E daí?”

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL – [email protected]