Assisti ao filme “Os primeiros soldados”, de 2021, dirigido por Rodrigo de Oliveira e estrelado por Johnny Massaro, Renata Carvalho, Clara Choveaux e Vitor Camilo, entre outros. É uma obra que provoca os sentidos, investe numa viagem no tempo e insiste em tornar atual um problema que muita gente já deixou para trás em suas preocupações: a AIDS.

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A história se passa na virada de 1983 para 1984. Um grupo de amigos em Vitória, Espírito Santo, se vê frente a frente com um novo tipo de mal-estar, vivido num campo de batalha inglório, invisibilizado, no qual se luta sem saber quem é efetivamente o inimigo. As informações sobre a “peste” são poucas, desencontradas e repletas de preconceito e estupidez. Há várias cenas do filme que revelam o pânico social com que era tratada a questão do HIV. Num misto entre riso e desespero, aqueles que se viam acometidos pela doença tornavam-se, sem exageros, os primeiros soldados de uma inóspita guerra.

Na linha de frente, o medo é um companheiro inseparável. Não importa o que aconteça, quem nela está ficará sabendo antes, para o bem ou para o mal. Daí o apelo do filme à metáfora da guerra, da solidão nos espaços em que se travam disputas alheias aos soldados. Em toda guerra – sem exceção –, os verdadeiros responsáveis sempre estão longe, protegidos, e são considerados insuspeitos. Sobra, na incerta batalha inicial contra a AIDS, para homossexuais, transexuais e prostitutas – a eles é creditada toda culpa, contra eles todo mal será lançado, somente eles devem ter com o que se preocupar. Como na guerra, quem se vê distante lava as mãos e vira as costas.

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. | Foto: iStock

Em “Os primeiros soldados”, a imagem incorpora sinais e ajusta-se ao tempo presente. Há no belo filme nacional uma vereda no interior das personagens, um tratamento sensível às suas dores e angústias. O pavor diante do desconhecido elabora saídas muito humanas, que vão da ilusão da cura rápida até a criação de redes de solidariedade. Quando vemos três jovens adoecidos retornarem à natureza para cuidar de si mesmos e uns dos outros, vislumbramos a esperança. Afinal de contas, toda saída virá mesmo de um regresso ao que existe de mais profundo em nossas experiências de vida. A comunhão entre cultura e natureza desfaz preconceitos e estimula no espectador um olhar de ternura, transferência. Faltam, no Brasil contemporâneo, lições de vida assim, para que possamos superar os grosseiros momentos de ódio e beligerância.

As histórias que se entrecruzam no filme de Rodrigo de Oliveira deixam claro que na guerra nunca há vencedores. Não importa se existem defensores de uma “guerra santa” ou se há necessidade de “fazer justiça”. Aqueles que sofrem e morrem estão para muito além de todo discurso com armas em mão. Em seu início, a AIDS incitou muitas guerras, desde a de nervos até a da ignorância travestida de um insuportável não saber. Aos primeiros doentes ficou o peso de um mundo hostil, estranhamente contrário ao amor e à felicidade à maneira de cada um. Venceu e vem vencendo a truculência.

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