Alegra-me, sempre que tenho oportunidade, contar a respeito da longa viagem que fiz de Sartre a Camus. Trata-se de uma passagem que me trouxe um olhar mais flexível sobre o mundo, que leva em conta a complexidade da vida, as infindáveis variações dos fatos, as incontáveis e múltiplas influências que tudo exerce sobre tudo. É particularmente enriquecedor quando essa história se dá em sala de aula, com meus alunos, ou com amigos, numa boa rodada de chope, à mesa de bar.

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Jean-Paul Sartre e Albert Camus, dispensável dizer, são dois grandes pensadores do século 20. Na França, ajudaram a criar e desenvolver a filosofia existencialista, que pressupõe a mundanidade vivida como essência prévia dos indivíduos – não haveria, pois, uma condição natural e imutável do ser, capaz de ser assimilada pela abstração da razão. Tanto Sartre quanto Camus, autores de obras seminais de nosso tempo, estiveram presentes nos debates mais fecundos da contemporaneidade, numa época em que a Guerra Fria dividia o mundo em dois lados, inconciliáveis, à beira de um intransponível abismo. Enquanto Sartre, estranhamente, manteve-se fiel aos absurdos soviéticos e terminou a vida num estranho romance ideológico com o maoísmo, Camus denunciou intolerâncias e violências, aderindo a uma perspectiva abertamente relativista dos pressupostos que ansiavam um mundo melhor.

Albert Camus
Albert Camus | Foto: Reprodução

Minha formação pessoal se deu quando ambos já estavam mortos e suas ideias ainda disputavam hegemonia no campo do pensamento progressista, dentro do qual fui apresentado à realidade. Na adolescência, eu admirava a genialidade de Sartre, seu engajamento político, sua honrosa participação pública nos grandes eventos em favor da revolução social. Camus se apresentava a mim um grande escritor, autor de livros com os quais muitas vezes amanheci, como “O estrangeiro”, “O mito de Sísifo” e “A queda”. Para além disso, como sujeito público, parecia-me titubeante, indeciso, ambíguo em sua relação crítica contra as desigualdades da vida.

Durante toda a minha trajetória no ensino superior (como aluno e também como professor), passei a entender que a “ambiguidade” de Camus era, na verdade, reflexividade, cuidado, antídoto contra o dogmatismo, o enrijecimento das ideias, a adesão cega a causas que diziam uma coisa e faziam outra. Entre idas e vindas, num percurso cheio de conflitos, concluí que Camus representava à altura minhas expectativas democráticas, minhas convicções de fundo liberal (respeito aos direitos humanos, à pluralidade de ideias e agires, às liberdades individuais e ao bem comum) e, principalmente, minha disposição de participar, no mundo, como agente ativo e solidário.

Em companhia de Albert Camus, enfim, aprendi (e ainda aprendo) que a vida difere na essência e na aparência, que ideias são ora convergentes, ora divergentes. Com o autor de “O primeiro homem”, sinto-me livre para duvidar, negar, criar aos poucos e com entusiasmo – fujo a fatalismos e evito convicções fechadas a argumentações contrárias. Para mim, a viagem em questão – felizmente! – nunca acaba.

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Albert Camus
Albert Camus | Foto: Reprodução

A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina

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