Não há entre nós, brasileiros, um bom mito fundador. Não somos herdeiros de lemas como “liberdade, igualdade e fraternidade”, por exemplo. Nos momentos decisivos de nosso processo civilizatório, quando estavam em jogo questões como a abolição e a república, estávamos divididos, eivados por interesses minúsculos e visões estreitas de mundo. Um atraso congênito nos caracteriza como nação, e isso explica muito do que se passa na história do país.

Em seu excelente ensaio “O diálogo possível”, o escritor Francisco Bosco retraça os caminhos percorridos pelo Brasil até desaguar neste momento de “polarização político-afetiva”, em que estão interditados os debates e consensos. Na linguagem insensata e violenta do dia a dia, mistura-se tudo. Expressões como “liberalismo”, “socialismo”, “esquerda” e “direita”, para ficar somente com algumas, são caricaturizadas ao gosto do freguês, desestimulando o jogo de ideias enriquecedor. No fim, prevalecem mentiras e ofensas, num mundo em que a democracia como valor agoniza.

No passado recente, aliás, a democracia nos servia como marcador comum. Recém-saídos da ditadura civil-militar (1964-85), condicionamos o debate em torno de valores democráticos. Era inadmissível que houvesse referências a autoritarismo, censura, tortura etc. Atravessadas poucas décadas, a democracia deixou de ser algo que nos unisse, como, noutros passados, também tentaram o futebol e a cultura popular, atesta Francisco Bosco.

O livro de Bosco traz um subtítulo ambicioso: “por uma reconstrução do debate público brasileiro”. Como superar o abismo tardio que nos mantêm presos a Guerra Fria? Como encarar a linguagem cotidiana como pulsão de verdade? No limite, como tornar crível um debate que não se queira pronto de antemão, emoldurado por ideologias cegas e crenças totalizantes? O desafio de restabelecer um fluxo de ideias no Brasil é que me parece deveras ambicioso – a sensação que tenho é a de que estão proibidos novos nexos, novas ferramentas discursivas, novas interpretações da vida...

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. | Foto: Reprodução

Se a causa do problema é muito mais afetiva do que racional, como admite Bosco, de que modo enfrentá-lo apostando em argumentos e lições da história? Bosco faz um longo percurso, mergulhando em águas coloniais, para atracar num presente que insiste em ser caracterizado por particularismos, à esquerda e à direita, abolindo da perspectiva de construção nacional um universalismo que garanta lugar para todos. No lugar do bom e velho espaço público, o que Bosco encontra são gritos para surdos, gestos para cegos, letras registradas diante de olhos que não sabem ler.

Apesar do cenário desestimulante, o livro – ainda bem! – não é pessimista. Crê numa saída democrática para o Brasil e na superação deste momento tão obtuso, em que a destruição seduz milhões de brasileiros. O caminho é árduo e a fé na democracia exige postura quase transcendental. Sem um bom debate público, contudo, cava-se ainda mais o buraco do autoritarismo e do ódio generalizado, convertendo em algo inviável a coexistência.

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