Gosto de fazer longas caminhadas. Exercícios físicos me dão muita preguiça. Ao contrário, caminhar me alegra, me permite pensar na vida, deixar que ideias voem dentro da minha cabeça. Além disso, atrai-me observar as pessoas, seus encantos e desencantos. Tal qual o flâneur de Walter Benjamin, pertenço à cidade ao percorrer suas ruas, vielas e praças. Ao mesmo tempo, tudo me escapa. “Perdido”, integro-me à paisagem.

LEIA MAIS:

Ancestralidade e independência, uma história de silenciamentos

Dias atrás, atravessei o centro da cidade numa extensa diagonal. O objetivo era resgatar um romance na prateleira de um sebo de livros. Encontrei a obra pela internet e decidi largar tudo para ir comprá-la. A leitura começaria à noite, no intuito de enriquecer as ideias com uma história nova, dedicada a quem deseja um pouco mais da vida. Acredito, sinceramente, que livros mudam muita coisa em nós. Essa crença, aliás, aprendi lendo um conto de mestre Rubem Fonseca. Dizem que Fonseca é o herói de 9 em cada 10 escritores de minha geração. Concordo. Sem ele, não existiríamos. É possível que até de caminhadas eu detestasse não fosse o bom e velho autor de “Feliz Ano Novo”.

Durante o “passeio”, tudo atravessa os pensamentos: a morte da rainha (e dos povos que ela colonizou), as pesquisas eleitorais, o preço do feijão, a cerveja da sexta-feira, o desejo irrefreável de que este tempo logo passe e o Brasil volte a ser um lugar de comunhão. Entre realidades e delírios, observo a cidade, atônito, notando que há um estranho tom de abandono no ar: portas fechadas, dezenas de placas em que se lê “aluga”, comércio informal à beça, pirataria aos montes, gente pedindo comida, gente suplicando atenção. A paisagem fustiga, os olhares apavoram; dentro de cada imóvel, uma sombra parece gritar socorro. A cidade, de uma vez por todas, é hostil – não por provocar medo de assalto ou morte, mas por inibir a fantasia, proibir o sonho de um dia bom.

.
. | Foto: iStock

Lá pelas tantas, talvez na metade do caminho, penso na entrevista que vi com o intelectual indiano Vijay Prashad. Lúcido e perspicaz, ele afirma que o momento atual das sociedades mundiais não permite que almejemos grandes transformações. A mudança social depende do modo como as pessoas se organizam e compartilham sentimentos e cosmovisões. Por ora, tudo obedece a um forte conservadorismo. Para onde quer que olhemos, há gente defendendo um estado policial, uma família tradicional, um namoro ideal. Para enfrentar essa realidade, tão refratária quanto a paisagem da cidade que habito, é preciso que tenhamos paciência e sejamos persistentes. Necessitamos do tempo e da esperança ao nosso lado.

Na volta, com meu livro de João Gilberto Noll em mãos, observei um grupo de indivíduos que gritavam, enfurecidamente, “Deus, Pátria e Família!”. Sorri, meio safadamente. Lembrei-me do saudoso e querido Barão de Itararé, quando ouviu, nos anos 1940, a mesma frase e correu, animado, para acompanhar o cortejo. Chegando mais perto, decepcionou-se. Ele pensara ter ouvido “Adeus, pátria e família!”. Eu, doutro modo, ouvi bem. Segui em frente. Isso vai passar.