Sempre encaro com um pé atrás tudo que se diz oficial. Minha eterna inspiração anarquista me obriga a duvidar daquilo que se pretende a última palavra num determinado assunto. Por isso, neste 7 de setembro, permito-me questionar a abrangência da versão estandardizada da independência do Brasil. As coisas não são tão verdes e amarelas quanto parecem.

A história do Brasil é repleta de silenciamentos e apagamentos. Isso, para todos os efeitos, nunca foi oficial. A visão que se propaga do país é a de um paraíso em que a vida se dá na mais santa paz, dentro da ordem, graças a um povo hospitaleiro e feliz. Quando temos a oportunidade de encontrar, na escola, bons professores de história, filosofia e sociologia, descobrimos que essa imagem idílica é falsa, um amontoado de ideologias que servem aos donos do poder como símbolos para vender uma nação que nunca existiu.

O conceito de ancestralidade ajuda a compreender melhor nosso drama. Quantos saberes matamos no longo processo de colonização do Brasil? Quantas histórias impedimos de vir à tona por conta de nossa endêmica violência contra os “de baixo”? Qualquer número que se imagine é pequeno diante da realidade. O fato é que grande parte de nossa memória se encontra enevoada, negada, em estado de repouso histórico. Hoje, felizmente, muitos grupos sociais reivindicam essa herança ocultada e vêm reinventando nossa trajetória como diverso e conflitante povo nação.

Imagem ilustrativa da imagem Ancestralidade e independência: uma história de silenciamentos
| Foto: iStock

Indígenas, negros e uma infinidade de estrangeiros compuseram as culturas brasileiras, no plural. Esse processo não foi tranquilo e não cabe em hinos, bandeiras ou corações necropolíticos que nos visitam no momento do assim chamado bicentenário do Brasil independente. Costumo recordar que, nas comemorações do centenário, em 1922, dois eventos tensionaram a falsa ideia de harmonia num país de contrastes infinitos: a Semana de Arte e a fundação do Partido Comunista (PCB). Tanto num quanto noutro, o que se viu foi a indagação: “Que pais é este?” – novas imagens, renovados símbolos, acirramento de diferenças, exposição do oculto, tudo isso e muito mais estava por trás daqueles episódios tão marcantes de nossa história.

Decerto, não foi um grito às margens do rio Ipiranga que decretou nossa liberdade como nação. Do mesmo modo, não foi um ato voluntarioso, pacífico e generoso que deu início ao nosso percurso como país independente. Antes, sufocadas, inúmeras revoltas populares já lutavam por liberdade, noutros termos, mais amplos, muito mais populares.

(Vale lembrar, para esses fins, somente dois eventos: a Conjuração Baiana, 1798, e a Revolução Pernambucana, 1817.)

Nesse sentido, uma imagem menos corrompida do Brasil requer um olhar atento à ancestralidade de nossos saberes, às trajetórias populares em busca de liberdade e dignidade. A versão oficial, mórbida e mentirosa, insiste em esconder itinerários de luta, exemplos de resistência e interesses mesquinhos que ergueram um país de realidade injusta, cruenta e extremamente desigual. Recontemos, então, nossa história.

...

A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

...

Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link