Saudade tem cheiro, forma e cor
PUBLICAÇÃO
sábado, 25 de julho de 2020
Celia Musilli - Grupo Folha
Quando voltei para Londrina, depois de viver seis anos entre Campinas e São Paulo, andava pelas ruas da cidade como se a tomasse de novo. Londrina, na verdade, nunca esteve fora de mim, levei-a para onde fui, muitas vezes me sentindo estrangeira onde estava.
Um das coisas que me deram a sensação de pertencimento quando voltei foi o cheiro da cidade, uma sensação que me tomou quando estava na rua Pará e notei que alguém estava assando um bolo. Continuei andando e, quando cheguei à rua Pernambuco, senti também o cheiro de feijão refogado no alho e foi como se o almoço de muitas gerações entrasse pelo meu nariz, me levando também à infância.
Gosto de pensar na cidade nos seus primeiros anos. Fico imaginando os homens e mulheres - entre eles meus pais - que chegaram aqui carregando sonhos que se ergueram aos poucos em construções que hoje vejo da janela do sexto andar. É neste espaço que a saudade também toma forma quando olho a peroba do Bosque que abriga ninhos, como se as décadas nunca tivessem passado. Mas, olhando para baixo, percebo que muita coisa passou, com a velocidade dos carros nos quais os passageiros, preocupados com o dia a dia, não pensam em ninhos, perobas ou urubus.
Já escrevi sobre os cheiros de Londrina. Da mistura das floradas das árvores em estações distintas às ruas que cheiram à comida. Cada lugar tem uma memória sensorial que nunca esquecemos quando nele passamos dias de felicidade. Foi por isso que guardei de São Paulo o cheiro da Casa das Rosas, espaço cultural que tem sim um jardim de rosas, mas com a qual me liguei pelo cheiro de umidade do velho casarão combinado com perfume de sabonete.
Descobri que a saudade é mais que um sentimento difícil de descrever. O que dizemos nunca se equipara ao que sentimos quando uma coisa acontece subitamente, nos remetendo de volta ao que faz parte da nossa trajetória no mundo. Coisas tão intensas que flagramos sensorialmente, pelo olhar, tato, cheiro ou som.
Da minha cidade natal, Cornélio Procópio, aqui mesmo no norte do Paraná, guardo o som dos vendedores que passavam em camionetes vendendo frutas, chamando as pessoas para comprar mexericas ou abacates. É também da rua da minha infância que vem a voz de um espanhol que vendia ovos de porta em porta, gritando para que todos comprassem “los huevos”. Lembro-me também do barulho constante de serra que vinha casa da família Ranciaro, que cortava e aplainava tábuas para a construção de casas e móveis.
Tudo isso voltou à minha memória porque li que a escritora dinamarquesa Karen Blixen, que assinava com o pseudônimo Isak Dinesen, saiu de seu país e foi viver no Quênia (África), continente onde fez amizade com os nativos, enquanto administrava uma fazenda de café, e ao qual se apegou tão profundamente que quando voltou à Europa adquiriu um hábito que é um retrato perfeito da saudade. Todas as tardes, quando o sol se punha, ela ia para a porta de casa e olhava para o sul, na verdade, olhava para a África. Aprendi assim que saudade também é um sentimento que nos faz olhar para uma direção e penso que se um dia me mudar daqui continuarei olhando para Londrina. A saudade é um horizonte no qual passado e presente se encontram.