Sempre que vejo uma tela de Joan Miró me lembro da primavera. Não porque ele pintasse flores, mas porque suas obras têm um colorido e uma pulsação que me lembram essa estação do ano. Se pudesse, viveria para sempre na primavera ou entre os quadros de Miró.

Na juventude, o pintor catalão estudou comércio e chegou a trabalhar num balcão de farmácia. Não demorou muito e sofreu um crise de nervos. Pudera, imagino o homem de criatividade exuberante entre vidros e fórmulas de remédios, explicando a alguém o que poderia tomar para o reumatismo. Restabelecido, teve depois de algum tempo a autorização da família para estudar arte. Chega a soar estranho que, naquele tempo, os jovens tivessem que convencer os pais para estudar o que realmente gostavam, mas, ainda hoje, há quem ache que os filhos só serão bem sucedidos se estudarem Medicina, Engenharia ou Direito. Mas quando um artista consegue por suas obras alguns milhões de euros, como vemos às vezes, ele se torna "bem sucedido" aos olhos da sociedade, como no caso de Miró.

Em 1919, Miró conheceu Pablo Picasso e imagino os dois artistas como explosões radioativas espalhando não a desgraça , mas a potência na criação de algumas das pinturas mais famosas do mundo. Durante a Guerra Civil Espanhola, Picasso pintaria "Guernica", entre 1936 e 1939, que ecoou como um grande manifesto contra o regime de Francisco Franco. No mesmo período, Miró pintaria o painel "O Ceifeiro" (1939) e as duas obras figurariam lado a lado no Salão Internacional de Arte de Paris.

Miró não se limitaria à contestação, embora tenha deixada clara sua luta contra a violência dos sistemas políticos. Em 1920 quando conheceu Andrê Breton, figura central do movimento surrealista, sua arte se tornaria ainda mais simbólica, embora sem a complexidade psicanalítica do surrealismo. Uma explosão de símbolos tomaria a realidade como uma "tradução poética". Com cores exuberantes, pontos e linhas criaria " Números e Constelações de Amor Com uma Mulher", em 1941, obra que se insere no panorama das artes como uma das mais importantes do século 20.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Com signos pintados em grandes vazios, sua arte tomaria o caminho que o definiria como pintor cromático, livre e expansivo, a ponto de seu universo lúdico ser comparado às alegrias da infância, pela beleza das "pinturas de criança" que trazem, no entanto, um alto nível de refinamento, uma simplicidade intrigante que mexe com nossos sentidos, nos ligando a sentimentos profundos. Os títulos de suas obras acompanham a ideia de uma tradução poética da realidade, como "Mulher e Pássaro ao Luar" e "Mulher em Frente ao Sol", ambas de 1949.

Na maturidade, Miró continuaria sua experimentação em pinturas, cerâmicas e esculturas, nas quais utilizou também as sucatas. O experimentalismo o levaria a queimar parcialmente algumas de suas obras e, depois de pendurar nelas alguns objetos, como guarda-chuvas, ofereceria ao mundo uma concepção de arte que se faz e se desfaz.

O artista morreu em 1983 já consagrado, deixando em suas obras as marcas de uma pintura "infantil" que também soa como arte do homem primitivo. No fim da vida substituiu o colorido pelo preto e branco em algumas telas, mas são suas cores vibrantes que me remetem à primavera de 2020 porque acabo de assistir um especial dedicado ao artista no canal Curta. Neste tempo sombrio por tantas razões, inauguro com Miró a primavera, na qual as linhas, traços e cores preenchem o vazio das telas e de todos nós.