“Os inocentes do Leblon não viram o navio entrar.

Trouxe bailarinas?

trouxe imigrantes?

trouxe um grama de rádio?

Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,

mas a areia é quente,

e há um óleo suave

que eles passam nas costas, e esquecem.”

(Poema do livro “Sentimento do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1940)

Esta semana, o poema de Drummond na voz de Chico Buarque de Holanda, ganhou as redes num vídeo produzido pelo IMS - Instituto Moreira Salles - com imagens atuais da vida noturna do bairro carioca.

O poema fala do Leblon, bairro de elite que recentemente abriu os bares que foram invadidos por uma horda alegre, muitos sem máscara, que celebravam a “volta à vida”, tomando cerveja Corona.

Entre os gritos da juventude dourada e dos velhos de cabelos brancos, tivemos uma amostra de quem torce para que tudo permaneça aberto no Brasil, no meio da pandemia, tropeçando nas cruzes dos cerca de 70 mil mortos.

Drummond foi um poeta excepcional que aliou o lirismo a uma crítica social refinada. O poema “Os Inocentes do Leblon” é um exemplo dessa sua acuidade para com os problemas do mundo e dos Raimundos, que nunca tiveram solução.

O Leblon é evocado no poema como o bairro que foi povoado pelas bailarinas e os imigrantes nos primeiros tempos. Para quem não entendeu, as bailarinas, num Brasil nem tão distante, eram associadas à prostituição, vistas como as vedetes do Teatro de Revista. As bailarinas se misturaram aos imigrantes nas primeiras décadas do século 20, tornando o bairro um emblema dos choques sociais que começariam a dar forma a abismos que ainda não superamos.

Já o rádio representa o medo da radioatividade que poderia chegar também pelos navios que aportavam no Rio de Janeiro. Essa associação e o medo ficaram mais fortes anos depois, após a detonação da bomba atômica sobre Hiroshima, fato que espalhou terror pelo mundo.

O poema adaptado à pandemia de hoje, mostra “os inocentes do Leblon” como os que ignoram o perigo preferindo “curtir a vida” em vez de chorar os mortos. Desde que os mortos sejam outros ou dos outros.

Hoje no Brasil, há camadas que misturam pontas populares e de elite que fazem questão desta “inocência.” A vida fica mais fácil quando não sabemos ou fingimos não saber que o vírus que hoje circula causa tanta destruição quanto a radioatividade.

É impressionante como aqueles corpos dourados do Leblon, besuntados com um óleo suave, se expõem sem reconhecer os riscos, sem máscaras, sem lavar às mãos para beber uma caipirinha ou rumar, inocentes, para o quiosque de camarões. E lá se vão 12 mil mortes pela doença no Rio, mas isso nas praias não importa.

Não é preciso tomar um avião para ver os “inocentes” bronzeados. Aqui mesmo em Londrina consta que os “desencanados” frequentam festas e bares, fumam narguilé,tomam todas as marcas de cerveja comemorando não sei bem o quê.

O poema de Drummond é sobre a falta de empatia e a falta de solidariedade. A espécie humana tem o estranho dom de não se compadecer de sua própria situação. O choro e o luto só são reconhecidos quando batem à nossa porta, levando pais e filhos, irmãs e irmãos. Enquanto isso não acontece, os “inocentes” se mantêm na onda da ignorância onde a tragédia não surfa, na proa do navio que carrega no ventre o grama de radioatividade, ao sol do vírus, distraídos num eterno verão.

Assista ao vídeo com o poema Os Inocentes do Leblon interpretado por Chico Buarque