Procuro o tema da crônica debaixo do tapete, dos móveis, abro o armário e só conto vestidos. Devo encontrá-lo no olho do gato, no beija-flor da varanda, nas moléculas de água de um anúncio de verão, na seca do inverno de pouca chuva, nas dobras da sombrinha guardada há meses, no toque do homem por quem me apaixonei, na distância que me provoca nostalgia, mas nada vejo porque tudo muda de lugar.

Devo encontrar o tema da crônica na seção de "perdidos e achados" do Correio, numa mala antiga, nas etiquetas das roupas, em alguma novidade passageira, nas temporadas sombrias, no canto esquerdo do caramanchão, nas sementes de laranja que deixei sobre a terra, no broto de uma planta desconhecida, no perfume que uma árvore exala ao entardecer, no nome dos ex-namorados, no parto dos filhos, nas esquinas iluminadas pela lua, nos beijos trocados nas rodoviárias, nos cinemas fechados, nos destinos suspensos, nas pausas inconformadas.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Devo encontrar o tema da crônica neste balé de ideias presas com fita adesiva, nos miolos moles dos adolescentes, na teimosia dos velhos caducos, nas receitas da avó, nas agulhas eternas nas mãos da mãe. Devo encontrar um princípio de texto, uma chama tremulante de vela acesa em temporal, uma sílaba nas brasas de um fogão à lenha, nos utensílios de cozinha brilhando como estrelas lustradas com Bombril.

Devo encontrar o tema da crônica em programas de TV que não existem mais, em pergaminhos egípcios, em brincos de ouro, em anéis de Saturno ou qualquer imagem poética que contenha um princípio de texto sem fim.

Devo encontrar o tema da crônica ainda hoje procurando com lanterna, com olhos pregados no chão, nos tropeços por conta da vista fraca, nos prazeres dos óculos que me permitem ler um hai kai de Jack Kerouac de 1950, atravessando décadas de inconformismo budista em país cristão.

Devo encontrar o tema da crônica neste excesso de informação que há nos meios virtuais, na fuga da realidade, no encontro com as verdades líquidas e certas que evaporam de um ano a outro nas bocas de candidatos à eleição.

Devo encontrar o tema da crônica no cotidiano simplificado ou na sofisticação de um tempo inexistente onde colocamos sonhos que viajam a jato, rápidos demais para serem alcançados como passarinhos, peixes do mar e asteroides.

Devo procurar o tema da crônica em acasos entrecortados por interjeições de espanto: ah! oh! Antevendo o sentido da frase seguinte e pontuando tudo com observações sobre o texto em fluxo. Devo procurar o tema da crônica numa tentativa de escrita automática, em que o desconexo passa a ter sentido, ligando-se magicamente a um pensamento oculto que só os videntes e os poetas revelam na verbalização criada em surto.

Devo procurar por palavras que juntas se transformem em crônica de costumes, hábitos e outras formações que viciam espíritos humanos tornando todos inclinados a leis que, no fim, pouco importam servindo apenas à limitação da liberdade que justificaria uma Babel de letras escritas em qualquer idioma.

Devo exercitar a procura de um tema sabendo que não se trata de um texto explicativo, mas que faça as mentes voarem nas manhãs de domingo quando todos põem à disposição do leitor opiniões sobre assuntos tão díspares quanto a economia e a patinação no gelo. Ao escrever sobre tantas coisas, mudando de assunto como quem ouve vozes ou programas de rádio perdidos no espaço, percebo que a crônica é um artigo de luxo onde se fala um pouco de tudo e ninguém estranha.

* Crônica publicada originalmente em 13 de setembro de 2014.

* A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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