Vem da Grécia a sabedoria milenar da mitologia que ainda serve à humanidade. Não é brincadeira a série de mitos que incorporam e interpretam o comportamento humano, das virtudes aos defeitos. Isso nasceu no século VIII a.C e, ainda, pode nos servir de guia.

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De todos os mitos, Narciso é um dos que mais se adaptam à vida contemporânea, quando a imagem (ah! a imagem) conta mais que a felicidade. Narciso é aquele cara que nasceu tão bonito que sua mãe foi perguntar a um adivinho se, apesar de lindo, ele poderia ter uma vida longa. O adivinho disse que sim, desde que ele nunca visse a própria imagem. Adulto, Narciso deixava as moças caídas de paixão, embora preferisse viver só. Até que uma ninfa chamada Eco, possuída pela rejeição, consultou Nêmesis, a deusa da vingança, e pediu uma maldição: ela queria que o bonitão se apaixonasse por alguém que ele não pudesse ter. A maldição foi lançada e Narciso apaixonou-se por si mesmo, quando foi beber água e viu sua imagem refletida.

A mitologia pode ser retomada numa sucessão de Narcisos nas redes sociais. A selfie se tornou um espelho digital tão poderoso que ver a própria imagem refletida tornou-se uma obsessão. Como Narciso, homens e mulheres não conseguem mais parar de se olhar. E tocar neste ponto, pode suscitar a pergunta: "E o que você tem com isso? Sou tão linda (ou lindo) que caio, sim, de amores por mim mesma." Ainda que esse "amar a si mesmo" seja só olhar a própria imagem numa telinha, o que não implica necessariamente na construção da autoestima.

Narcisos contemporâneos, ao mesmo tempo em que se admiram, põem defeitos em si mesmos em busca da perfeição. Uma perfeição padronizada que já criou uma segunda obsessão: uma multidão por aí, com a boca aumentada e o nariz diminuído. Um padrão estético que, é claro, custa muito dinheiro.

Diante disso, o filme "Glass Life", que está na plataforma MUBI, faz uma crítica criativa e sensível ao Narciso digital. Ele precisa ser assistido por quem se olha muito no espelho e por quem vê a construção do homem contemporâneo como um produto ampliado por tecnologias que fazem a vida real parecer obra de ficção.

No curta-metragem, Sara Cwynar usa o computador e várias instalações para mergulhar de forma vertiginosa - que reproduz a velocidade do mundo digital - para mostrar que hoje, cada rua do planeta e cada casa já foi esquadrinhada por um aplicativo sem que seus moradores soubessem. Da mesma forma, nessa "vida de vidro" (ou de telas) não temos mais controle sobre nossos dados pessoais. A artista mostra como projetamos nosso corpo e nossos desejos para o mundo - na tentativa de que eles voltem para nós com uma resposta, ou um clique de aceitação.

No filme, textos de poetas e escritores como Virginia Woolf, DH Lawrence e Emily Dickinson pontuam as imagens com uma grande reflexão. Tudo gira em torno da ampliação das forças do capitalismo, que estraçalha a linguagem (é tudo um loop) e também rege padrões de beleza narcísica ou de feiúra, embora essa obsessão sequestre nossa liberdade.

A síntese do filme está numa frase: "Hoje, a nação livre é apenas um lugar para se fazer compras."

Não percam o filme nem a crítica!

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