Um leitor me pede para falar do cotidiano do jornal durante a pandemia. Acho o assunto bom. Uma redação que durante anos trabalhou presencialmente, como um corpo único, de repente se vê fragmentada: muitas vezes, cada um no seu canto, trabalhando em casa, porque a convivência passou a ser algo perigoso e inimaginável, até termos dado de cara com um vírus que pôs todo mundo em risco.

A mudança veio aos poucos, primeiro com todos trabalhando de máscaras sem que pudéssemos mais ver os sorrisos. Depois, pouco a pouco, os mais velhos e os que têm problemas de saúde foram para casa, até nos depararmos com mesas cada vez mais vazias e vermos de perto alguns casos de covid. Então, as quarentenas também passaram a fazer parte do cotidiano, começando ou terminando conforme os prognósticos.

Todo um pequeno mundo, que parecia sólido, virou de pernas pro ar. Mas a medida em que o trabalho conjunto e presencial se tornou impossível , um outro “espírito de corpo” tomou conta de repórteres, editores, diagramadores e fotógrafos. Continuamos juntos, embora separados, e uma nova força passou a existir a partir da crise. Vi, mais uma vez, que o papel social da nossa profissão não se aprende só na faculdade, mas com todas as tensões da realidade.

Os jornalistas tomam para si um papel que não está previsto em contratos, como manter o humor, formam uma rede que carrega uma edição diária, com sol ou chuva, com os sistemas informatizados do nosso provedor em pé ou caindo. E se a tecnologia já nos ajudava antes da crise, a necessidade de trabalhar em grupo, de forma remota, fez essa possibilidade avançar cinco anos em apenas cinco meses. Aprendemos na marra o que é fazer uma edição de casa, nos valendo de reuniões virtuais, pautas em grupos de WhatsApp, fotografias com o celular sacado do bolso, notícias simultâneas com o “espírito de corpo jornalístico” nos guiando como relatores da tragédia e de algumas vitórias quando alguém se cura.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Na rotina diária, ninguém fica acomodado, mas se envolve com tudo, demandas das editorias de cultura, geral, economia ou política se juntam na crise. Há hospitais lotados, cidadãos sem emprego, artistas passando necessidades, programas sociais em caráter de urgência, movimentos de solidariedade que figuram como um alento. Está tudo junto e misturado, mesmo que a gente não esteja na linha de frente sabendo que, muito além da quarentena de butique que alguns ostentam, há uma sociedade carente de coisas básicas.

Essa crise afeta todas as estruturas de trabalho e no jornal não é diferente. Todos fazem de tudo um pouco, abraçando também outras editorias. Não é hora de se acomodar com um livro na mão ou ligado na última série da TV. Embora os livros e as séries sejam uma faxina mental quando terminamos o dia.

Acabou o cercadinho, o jornalismo é crucial neste momento. Informação gera cuidados, alertas, confirma, desmente, mobiliza.

Acho que não voltaremos iguais de tudo isso. A pandemia mudou a lógica de trabalho, de produção e de relação com os outros. Um momento forçado - é verdade - para desenvolver a empatia, a parceria, a solidariedade, pelo menos para quem as têm.

Nunca saímos tanto do nosso quadrado, mesmo estando reclusos. Admiro cada vez mais o trabalho dos colegas neste momento: a garra dos repórteres, a fibra dos editores, a sensibilidade dos fotógrafos, o apoio incondicional dos diagramadores, a esperteza e as habilidades da equipe que alimenta os sites.

Se levo uma lição deste momento, em que lidamos com a pandemia como quem vai à guerra, é a certeza de que na crise a imprensa se levanta.