Decidi me dedicar às coisas boas, voltei a escrever poesia, estou organizando um livro, resgatando o que ficou solto por aí. É meu antídoto contra esse clima pesado, esse momento trágico, esse país à beira do abismo, essa doença que não tem tempo para terminar. Aguardo as vacinas e dias melhores.

Por ora, me ocupo em deixar as coisas mais bonitas, registros sobre a minha passagem no planeta, envolto numa atmosfera azul da qual quase nunca entendemos o recado da mais grandiosa poesia.

No meio dessa tragédia tenho flashs de momentos vividos, recortes do maravilhamento que estão por aí mesmo, quando a gente pode circular livremente pelo mundo. Chegar à praia ao amanhecer, ver aquela fina camada de ouro sobre o mar, um riso de criança vindo não se sabe de onde, depois ver a mãe e os filhos pulando como golfinhos.

Chegar à praia e ver nas primeiras horas do dia a maré calma espumando do horizonte à orla até que, ali pelo meio dia, as ondas criam volume, vêm fortes, com o mar lembrando que é mar em toda sua potência. Mesmo quando o dia é chuvoso, o litoral tem o clima melancólico de uma tela de Monet quando seus pincéis registravam paisagens sombrias.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Outros flashs trazem a lembrança de dias ensolarados, quando caminhar pela cidade, num passeio simples, tem uma alegria infantil, dessas de dar comida aos pombos, ainda que nem isso possamos fazer: primeiro, pela saúde pública; segundo, pela pandemia.

Mas na minha janela há um recorte de árvores fazendo sombra na calçada e que às vezes até florescem, a despeito da pouca terra em suas raízes. Existem árvores tão teimosas quanto aqueles velhos que voltam dos hospitais para informar que a vida continua, apesar das dores nas juntas, dos pulmões fracos ou dos rins estropiados. Por alguma razão, a alegria de viver é maior que todos os embates na velhice. Eles riem quando atravessam a rua com passos miúdos e roupas que dançam em seus corpos magros, como se fossem a um baile.

Escrevo e me lembro de cenas que seriam quase insignificantes nos dias em que não tomamos a vida como o último gole. Mas hoje, com 265 mil mortos aqui mesmo, na vizinhança chamada Brasil, cada dia vivido é uma vitória do acaso e da esperança.

Meu desejo agora é imitar a Terra em sua formação, criando paisagens humanas mais harmoniosas e bem acabadas. De feio e triste bastam as cenas do cotidiano pelo avesso.

Neste momento grave, devemos refinar o olhar, estamos em dívida com a beleza. Mas ainda é tempo de registrar o mundo maravilhoso daquela canção de Louis Armstrong.