No ar elas parecem de papel, brancas e leves. Passam em bandos, com graça de bailarinas, sempre na contramão dos homens. As garças do Lago Igapó migram pra lá e pra cá, duas vezes ao dia. Uma divertida ciranda de dez, doze aves que chegam ou saem aos poucos, às seis da manhã e às seis da tarde. Coreografam chegadas e partidas, pontuais e plenas. Senhoras absolutas das rotas que marcam o tempo na cidade.

Pelo menos uma vez na vida, dispense o relógio e olhe as garças. É poético ver a contagem das horas num bater de asas, é engraçado ver um cartão-postal que passa voando, sem nunca errar o endereço.

Elas dormem numa ilha, numa única árvore, agitada como um condomínio. Cumprem horário de trabalhadoras, mas sem estresse. Planam na Avenida Castelo Branco na hora do rush, num ponto nevrálgico. De manhã vão para o oeste. Encontram o fluxo das nascentes que formam os lagos, buscam os campos, comem insetos que garantem a sua sobrevivência. De tarde vão para o leste, sacudindo as penas. Como são brancas as garças. Como passam incólumes à poluição e às graxas, como cortam em silêncio a rua de carros barulhentos numa lição de resistência e, quem sabe, de fé.

Na verdade não resistem, convivem com a urbanidade. Uma lembrança de como a vida pode ser leve. Vai longe o tempo em que o Igapó era apenas um filete d’água. Um brejo coberto por matas onde tatus e pacas viviam numa das florestas mais bonitas do planeta. Mata soberba de perobas e húmus fértil.

Depois veio o homem de machado em punho, senhor do fogo e das derrubadas. Como são fortes os homens e também impiedosos. Mas de uma impiedade que se mistura ao desejo de planejar a vida, ainda que seus planos acabem em erros.

Vieram os ranchos de palmito que cederiam às casas, feitas de madeira tirada das matas. E depois não haveria mais a mata. Vieram as casas de alvenaria, mais tarde os prédios, que hoje sinalizam a verticalidade urbana onde resistem as garças. Um pouco de graça sobre o concreto.

Dia desses, uma delas atravessou o semáforo. Queria demonstrar, pacífica, o seu modo de vida. Dizer que não é preciso mais que alimento, água e um mínimo de aventura. Confabulava enquanto um motorista esverdeava de raiva, ao ter sua passagem impedida por outro veículo. E enquanto os homens brigavam, gritando impropérios impróprios para os sentidos das aves, a garça

movimentou-se como uma dançarina, pousou perto do lago e a visão daquela pureza, daquela leveza feita de plumas, fez com que os homens abaixassem o tom da voz, para o olhar a ave por alguns segundos.

Pensei que a harmonia depende de tão pouco. Depende de substituir a passagem frenética do tempo por momentos em que, simplesmente, nos sentimos vivos. Ouvidos abertos, olhos atentos para ver cartões-postais no cotidiano. Num deles vi escrito, outro dia, com garranchos de garças, que às seis da manhã e às seis da tarde acontece uma revolução silenciosa na Avenida Castelo Branco. Ali, num condomínio de aves que não pagam síndicos e vivem sem governo, há uma lição diária de alegria e vida.

As garças têm rotas e compartilham espaços, precisam de pouco para sustentar seu corpo e, talvez, seus sonhos. Discussões e bicadas acontecem de vez em quando, mas não são rotina. Às vezes os biguás, de penas pretas, convivem com as garças brancas, formando na “árvore-condomínio” um desenho que lembra o yin e o yang, símbolo da decantada harmonia. Encaixe perfeito nas diferenças que os homens administram mal nas ruas. O mundo seria outro se os homens fossem pássaros.

* Crônica publicada originalmente em 22 de setembro de 2007.