Faço parte dos cerca de 14% dos brasileiros que moram em apartamento, porque segundo pesquisa do Pnad - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - de 2020, 85,6% os brasileiros vivem em casas. Achei grande essa parcela de quem vive com os pés no chão, sabendo quem abre o portão ou quando o gato pula o muro.

Eu, que naturalmente sou aérea, vejo meu quarteirão de cima, podendo contar sem erro a fila de carros que está passando na rua. A partir do sexto andar, descobri que tem mais carros brancos circulando, depois vêm os metálicos. Também vejo que os fios elétricos formam um emaranhado feio e que, mais de perto, dá medo ver os transformadores que roncam em dias de chuva e às vezes explodem como se um meteoro caísse na lavanderia.

Ao mesmo tempo, gosto de ver as tempestades do alto, as nuvens escuras que chegam e cobrem o topo dos edifícios, embora seja notável a sensação de que o mundo está acabando quando raios cruzam o céu, avisando que a eletricidade não é brincadeira.

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. | Foto: Marco Jacobsen

É bom dormir com a lua pendurada mais tempo na janela, espalhando um clarão que faz os gatos ficarem inquietos. No Bosque, eles passam a noite em folias que vejo de cima. O macho-alfa correndo atrás de um harém e miando como quem oferece: "Eu te dou um vestido nooovo." E as gatas respondem: "Eu raaasgo." Todos esses sons e luzes fazem as noites especiais, ainda que eu esteja em isolamento há mais de um ano me preservando na pandemia.

O mundo visto de cima parece mais interessante do que quando eu vivia em casas e tinha só o recorte da janela para espiar em noites insones porque não me atrevia a sair pelas ruas, às quatro da matina, para ver quem estava na esquina. Agora vejo as duas esquinas, a da fachada do Colégio Mãe de Deus de um lado, depois que ralearam as árvores na rua debaixo do Bosque e, à esquerda, uma fila de árvores que ainda estão em pé, quase todas dormitórios de pombas, sendo que as mais altas são dos urubus.

Ver a rua do alto é ter uma lente sobre detalhes que não vemos do chão. Em compensação, também não vejo as formigas que cansei de observar nos quintais, nem tenho mais a oportunidade de ver um sapo entrando na sala como nos tempos que morei pertinho da água. Um dia, vimos juntos o programa da Luciana Gimenez.

A vista aérea me torna também mais aérea, flagro o horizonte em meditações que dão a noção do infinito e da pequenez da humanidade que comanda as coisas na terra, mas também tenta dominar os céus em aviões e satélites que às vezes avisto, imaginando que um anjo passou de Porsche sobre minha cabeça.