As manhãs continuam com o sol estendido sobre a cidade, mas agora é um sol inacessível. Em tempos de quarentena, todo o dia se resume a um retângulo de janela, aquele pedaço que nos liga à vida externa sem que possamos nos envolver mais profundamente com ela. Duas realidades se impõem, não como escolha: a do mundo lá fora e a do mundo interior, onde nos recolhemos em pensamentos ou diálogos com quem convive conosco 24 horas. Nossos interlocutores podem ser contados nos dedos.

Há uma tensão no ar, mas ainda se veem elementos da paisagem que nos acompanham o mês inteiro, dia após dia, como a paisagem possível.

De minha parte, sempre gostei do que vi da minha janela, o sexto andar de um edifício no centro da cidade foi minha opção. Há uma cidade suspensa no topo dos edifícios de onde vejo outras janelas: algumas abertas nas primeiras horas do dia, outras semiabertas como se a luz em demasia incomodasse, outras sempre fechadas porque os antigos moradores se mudaram.

A beleza entre uma margem e outra do Bosque Central é sintetizada na altitude soberba de uma única peroba, a “rainha do pedaço” segue incólume nas alturas, estendendo galhos para seus visitantes cotidianos. Entre os mais assíduos estão os urubus, eles navegam correntes de ar e depois pousam num galho demonstrando a capacidade de ver a cidade muito acima das pessoas que dependem de um retângulo de janela. Na verdade, vemos a cidade quase sempre de um mesmo ângulo, enquanto os urubus têm visão de 360 graus. Eles podem ver o horizonte à esquerda e, pelo meu ângulo, suponho que possam contar as pombas na torre da Catedral. Eles podem ver o horizonte à direita, o Colégio Mãe de Deus onde a Mãe Santíssima mantém a calma dentro de sua capela. No mais, tudo é silêncio pelos lados do colégio nestes dias. Não há vozes de crianças, notas musicais, não tenho ouvido orações no pátio de onde, normalmente, emergem sussurros.

Os urubus ainda podem ver ninhos de outras aves, saber o horário em que o casal de gaviões chega e sai do Bosque, alguns metros adiante da copa da peroba, em outra árvore.

Quando olho para baixo, vejo que os carros diminuíram consideravelmente nas ruas e nos locais de estacionamento, embora, na última quinta-feira, tenha notado um movimento teimoso de automóveis onde haveria de existir isolamento. Mas não tenho visto os táxis vermelhos, a impressão é que saíram para uma longa viagem.

Dos ruídos da cidade, resta o barulho incômodo das mangueiras e máquinas de limpeza, há menos buzinas, sobrou o vozerio de alguns moradores de rua que continuam isolados do resto da população. Sua vida nunca foi diferente, o isolamento é uma condição natural de suas vidas embora seu “teto” seja o centro de Londrina.

Dentro de casa, o vento sopra entre janelas entrecruzadas, está tudo aberto para um mundo fechado. O planeta parou, não em seu movimento circular, mas num movimento que encurta vidas, as de quem morre pela epidemia e as de quem vive pela metade. Um vírus limitou nossa existência, um senhor que veio provar que tamanho não é documento.

Já são quase quinze dias de isolamento, trabalho em casa pensando na festa que virá quando a cidade se abrir outra vez. Voltaremos mais cordiais? Sentiremos mais alegria podendo transitar pelas calçadas com sol e chuva? Que bom: usaremos bolsas e sombrinhas de novo! Pagaremos as contas em filas nas quais será possível conversar uns com os outros.

Voltaremos muito diferentes dessa quarentena, dando bom dia e boa noite a desconhecidos. Ocuparemos o mundo como a espécie que precisou ser suspensa em seu individualismo para entender que pode ser mais receptiva. Acredito que a empatia sairá do armário e torço para que a gente reconheça a delicadeza de conviver com os diferentes sendo mais iguais.

* A jornalista Célia Musilli está em férias, esta crônica foi publicada originalmente em 4 de abril de 2020.

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