A criação é o mundo da imaginação sem limites. Pode nascer de uma faísca e causar incêndios, iluminações, fogo que dá início a fogueiras quando lemos poemas, apreciamos obras de arte, vamos ao cinema, ao teatro e voltamos com um desejo que escapa ao utilitarismo no cotidiano. Muitos disseram por aí que a arte não se presta à utilidade.

Paulo Leminski começa um ensaio crítico dizendo: "A burguesia criou um universo onde todo gesto tem que ser útil", para ressaltar que "o amor, amizade, o convívio, o júbilo do gol, a poesia, a festa, a embriaguez, o orgasmo não precisam de justificação nem de justificativas."

Da mesma forma, Manoel de Barros no seu "escritório de inutilidades", onde se refugiava todas as manhãs, propunha transformar-se em rã para demonstrar a supremacia do pequeno, a importância de ter olhos para ver gravetos no chão. Mas a ideia vem de longe. Rabelais (1494 – 1593) afirmava que "a poesia é uma virtude inútil" e André Breton ao defender a imaginação sem limites no Manifesto do Surrealismo (1924) critica a rotina onde se insere o valor das coisas por seu uso. Ele diz: "Esta imaginação que não admite limites, a ela não lhe é permitido se entregar a não ser segundo as leis de uma utilidade arbitrária; ela é incapaz de assumir por muito tempo este papel inferior e por volta dos vinte anos, prefere em geral, abandonar o homem a seu destino sem luz".

Muito antes de pesquisar a teoria, que tem valor por revelar e organizar o que aprendemos intuitivamente, já praticava a inutilidade como um modo de fazer poesia. Na verdade, já havia notado que quem tem olhos para poesia não despreza detalhes. Essas pessoas sabem que o céu muda todos os dias e que o momento de ver um galo nas nuvens é aquele em que ele levanta a crista efêmera que desaparece no minuto seguinte. E nunca mais se verá o mesmo galo.

Penso que o ofício do poeta seja, entre outros, "engarrafar nuvens" tomando aqui emprestada a imagem de outros poetas que têm a compreensão de que importa é aquilo a que a maioria não dá importância por desprezar sua "inutilidade". Muitas vezes vi cenas na rua que ninguém viu, assim como dei importância a uma folha bailarina que se prendeu no meu vestido criando a ideia de um broche.

Às vezes, digo a quem está comigo: "Olha aquela árvore", mesmo tendo a certeza que a pessoa vai olhar de relance, sem dar muito valor ao que mudou meu dia. Tenho igual relação com perfumes que sinto de longe, mesmo quando as avenidas estão cheias da fumaça dos automóveis.

Não espero do cinema os melhores cenários, embora tenha visto alguns que me remeteram a puro encantamento. Mas é nas cidades, no cotidiano, que encontro imagens para textos que quase sempre começam assim, de um pensamento natural sobre as coisas que estão aí mesmo. A inutilidade aparente das coisas é o que nos salva de um mundo demasiadamente pragmático, de um mundo sem imaginação. A poesia depende de atmosferas voláteis para se desprender de uma simples imagem e ganhar nova linguagem. Recomendo a todos um caleidoscópio de ideias.

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Crônica revisada, publicada originalmente em 2015. A colunista Célia Musilli está em férias.

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A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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