Os autores podem levar à escrita a topografia das cidades, o mistério da serra e a liberdade dos vales. Também podem resgatar lembranças como a luz impressionante da vidraça e os retalhos colhidos no chão do quarto onde a mãe costurava roupas de algodão.

A gaúcha Mar Becker transformou essas memórias num livro de poemas: “A Mulher Submersa”, recém-lançado pela Urutau e que pode ser adquirido pelo site da editora.

Mais que uma poética de memórias, trata-se de um testemunho da vida das mulheres, tema de quase todos os poemas, seja pela história da avó, da mãe, das irmãs, das tias, com direito a retratos falados das senhoras da vizinhança. Na obra, respiram as mulheres reais e as mulheres míticas.

O livro tem uma unidade narrativa que encadeia e trama vidas femininas. O título “A Mulher Submersa”, vem também da tríade de poetas cujas memórias marcam a cultura: Safo, Virginia Woolf e Ana Cristina César são personagens-poemas que dão pistas de onde a autora também bebeu e submergiu. São mulheres líquidas, flutuantes, com a marca da afetividade, da fatalidade e do trauma do suicídio.

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. | Foto: Marco Jacobsen

Uma das qualidades do livro é a unidade temática nas mais de 100 páginas sem que isso se torne repetitivo. Um caleidoscópio de vivências brilha no claro e também no escuro das desistências.

Dos cantos da casa familiar ou dos labirintos da serra gaúcha, emerge uma autora madura que conheci quase adolescente, como a mais jovem integrante de um grupo de poetas que convivia pelas redes sociais nos meados dos anos 2000. Não é surpresa que o livro de Mar Becker – que hoje vive em São Paulo - traga essa consistência, evidente desde muito cedo.

Sua escrita sempre foi arrebatadora pelas imagens e por uma atmosfera de intimidade e cumplicidade com personagens, situações que emergem e submergem. Seus poemas estão no limite dessa condição que tanto deixa transparecer sua cultura literária como sua vivência de mulher do interior, geográfico e íntimo.

É o “interior” que alimenta a poeta dos detalhes e da introspecção, mostrando sua força nos versos de um poema que considero um dos essenciais do livro, abordando muitas gerações:

“não esquecerei minha irmã

minha mãe

minha avó, morta com um tiro no peito

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tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais

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eu te amo mais, meu amor

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porque tu me amas com amor apenas

mas eu tive que aprender a te amar com ódio”

A poesia de Mar Becker é profunda, tem rebeldia, tem leveza sem submissão, emergindo da cultura angustiada, líquida e potente das mulheres.