Chico Buarque não vai mais cantar a música Com Açúcar Com Afeto, cedendo às feministas que acham a protagonista da canção submissa, pois ela faz o doce predileto do marido, pra ele parar em casa mas qual o que...

Voltando só à noite, meio bebinho, ele “diz que vai mudar de ideia”, porém só para agradar no momento, e ela diz o que vai fazer: “eu vou esquentar seu prato / dar um beijo em seu retrato / e abro meus braços pra você”... – e este é o trecho mais enraivecedor do feminismo ferrenho.

Nunca achei a música antifeminista, sempre ouvi como um piedoso e poético autorretrato fictício de um tipo de mulher que o feminismo fez superar. Mas as redes sociais, ao mesmo tempo que democratizaram a comunicação, mostram como tanta gente ainda não consegue ver contexto além do texto.

Escrevi uma crônica exaltando a primordialidade da raça negra, dizendo que jogador que é xingado de macaco devia agradecer, porque isso propicia dizer que todos viemos dos negros saídos da África há muitos milhares de anos para transmudar pelo mundo. Pensaram que eu estava querendo que o jogador xingado fosse à arquibancada agradecer aos injuriadores, enquanto todo o contexto expressava que isso deve ser feito à opinião pública, que é quem pode combater eficazmente racismo, machismo e ferominismo.

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. | Foto: iStock

O que sempre estranhei na letra dessa música é que o sujeito, que “diz que é operário”, sai de casa “a caminho da oficina”, “com seu terno mais bonito”, numa notável irrealidade, pois nunca vi operário ir de terno pro trabalho. Ou seria isso um modo do sujeito sair de casa já visivelmente mentindo à mulher? Nesse contexto, além dele e dela separadamente, forma-se a contradição do casal que só mora mas não vive junto, como tantos. E é assim que a mulher submissa serve mais que apenas a “seu” homem, serve a um modelo de casamento e de vida triste e falido, e a música então se reveste de uma imensa dignidade, como a mensagem de um náufrago ou a súplica de um ferido.

Se fôssemos expurgar (ou cancelar, como se maldiz) todas as distorções éticas nas artes, já grande parte das artes clássicas iriam para o lixo, pois produzidas num tempo em que eram só para deleite das elites escravocratas. Afinal, censurar é muito mais fácil que compreender, embora isto não queira dizer aceitar. O valor humano da arte está inclusive na sua capacidade de provocar várias perspectivas de um mesmo fato, conotações, sugestões, para além dos olhos e das crenças de cada um.

Se essa música devesse ser cancelada por feminagem, outra música de Chico - "Quem Te Viu, Quem Te Vê" - também deveria ser cancelada por machistagem. Pois o protagonista se queixa da mulher que prosperou, deixou o barraco e tem “noites de gala”, enquanto ele “continua na pista” e ela “na galeria”. Parece uma condenação à prosperidade feminina, e seu protagonista, tanto para as feministas como para os homens que superaram o machismo, figura-se um típico machista não só ciumento como também invejoso.

Certo é que a conscientização cresce com as redes sociais, como também as mentiras e os engodos. E cada um pode escolher entre a burrice dos cancelamentos, condenando essas músicas, ou pode continuar a ouvi-las com novos ouvidos, humanamente.

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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