Menino vi uma onça que mais e mais me vem na lembrança.

Era já pouco mais que noitinha. A jardineira da Viação Silva (e silva em Latim é selva) tinha metade do motor num narigão de lata que se projetava para diante dos faróis, outra metade do motor se embutia no ônibus, formando ao lado do motorista um calombão bem encapado, onde se lia que era proibido sentar ali.

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Eu não sentava, ia meio debruçado, com os cotovelos naquele coração do grande bicho de lata, que eu sentia trepidar e roncar abaixo de mim, e, com o nariz quase no grande parabrisa, podia ver tudo que vinha pela frente, e lá estaria a onça.

A jardineira já tinha passado dançando por muitos atoleiros, o motorista se exibindo ao volante até que as rodas deslizavam no barro e acabavam na valeta. Em dois encalhes, com enxadões, motorista e cobrador tinham botado o ônibus de volta na estrada, com os homens ajudando a empurrar e maldizendo o barro que sugava os sapatos.

Devia ser lá por 1950, eu com dez anos e os ônibus tipo jardineira logo iam desaparecer como as onças, mas ainda havia onças à vista. Aquela, falaria depois o cobrador, devia estar voltando para seu resto de mata, depois de passar o dia caçando noutro resto de mata vizinha, conforme as matas iam diminuindo e a caça rareando para a maior predadora do Sertão do Tibagi.

Jaguar - Panthera onca
Jaguar - Panthera onca | Foto: iStock

Como a gente já tinha cruzado de balsa o Tibagi, Londrina estava tão perto que o cobrador apontou luzes, então devíamos estar pouco depois de Ibiporã – quando, depois de subir roncando uma lombada, o ônibus chegou devagar ao topo e aí demos com a onça.

Ela cruzava a estrada e parou, virando a cabeça para olhar o grande bicho a avançar com seus olhos de luz. Foi um olhar de poucos segundos só, os olhos brilhando à luz dos faróis, antes de saltar e num segundo sumir.

Como maior predadora ali, não devia ter o costume de ter medo, e simplesmente saltou como a dizer que aquele bichão de lata devia ser demais para sua fome, mesmo num dia sem caça. Depois eu saberia que a cafeicultura, tão extensiva quanto temporária, quase extinguiria esse bicho tão singular, que só acasala para procriar, tem mordida que só perde em força para a do leão, leva presas até do seu mesmo peso para comer no alto de árvore, tem tão bela pelagem e a mais graciosa agilidade do chamado reino animal. E aquela mostrou mesmo pose e olhar de rainha a se tornar inesquecível.

Como a viagem tinha demorado muito, eu estava com fome como ela também devia estar com fome, ainda campeando. Em casa, comendo lembrei do cobrador, a dizer que onça é bicho bom, não ataca ninguém se não for atacada, como todos os bichos que também só atacam para comer. Aquele homem sem escola sabia o que hoje os zoólogos repetem, apelando pela sobrevivência das onças nas reservas florestais.

Depois de ver no telejornal tantos estragos humanos neste planeta maravilhoso que temos a graça de compartilhar, fecho os olhos e vejo os olhos da onça, sem medo mas logo assustada com o mais perigoso dos bichos. E continuo a guardar aquela onça no coração.

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A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.

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