A alma da casa está nas janelas, é por elas que olhamos para fora e falamos para dentro, nos fechamos ou nos abrimos para o mundo. Porque janelas se abrem para o céu e, mesmo dando para paisagem nenhuma, nos trazem sempre o milagre do ar, nosso (ainda) único serviço essencial gratuito.

As casas tinham mais alma quando se conversava de janela a janela. Casas antigas com janelas na calçada foram testemunhas de um mundo suburbano ou mesmo rurbano, entre cidade e roça, extinto pelo trânsito. Dá saudade daquelas janelas.

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(E, falando em janelas, é impossível não lembrar a cena de Jorge Amado, em que o sujeito sai de casa para matar outro, para isso levando faca, mas a vítima está na janela abrindo uma jaca, e convida para compartilhar, e acabam lambuzados de jaca, inclusive a faca.)

Já portas são o coração da casa, pois por elas passa a circulação caseira, que é como o sangue da casa a passar sempre pelas portas.

Mas pelas portas apenas passamos, na sala viajamos - pela tevê, claro. Viajar mesmo é na varanda, a avó das sacadas, e, cabendo uma rede, dá direito a viagem leito.

Já os quartos são retratos de seus moradores, desde os móveis até o jeito de deixar os sapatos, mais o que está nas paredes, o jeitão geral e os detalhes, tudo de cada um está retratado em cada quarto.

Voltando à sala, que não seja só lugar de ver apenas tevê, mas também a cara dos avós em velhas fotos ao lado de novas fotos dos netos, em grandes painéis de parede ou em pequenos porta-retratos, o que importa é ser sala humana, decorada e habitada por gente, mistura de museu familiar e recanto doméstico.

Além disso, a sala tem o condão de receber visitas! Menino vivi num mundo onde gente se visitava com mesa de café e conversas sobre parentes e conhecidos. Era uma rede social com acesso pelas salas.

Os banheiros são testemunhas da condição familiar, pobre com um banheiro só, classe média com dois, família rica a partir de três banheiros. Mas todo banheiro é igual no mostrar se é família limpinha ou porquinha.

Quem estranhou serem as portas o coração da casa, em vez da cozinha, é porque na verdade a cozinha é a cabeça da casa.

É na cozinha e copa, na mesa onde se come, que mais falamos da vida, discutimos problemas e projetos, trocamos ideias a afeto. E, fazendo comida ou comendo, é na cozinha que mais usamos a cabeça em casa, não só falando e ouvindo como usando os outros sentidos todos, paladar, olfato, visão e tato. Como corpo pode não ter perna ou braço mas tem de ter cabeça, casa pode nem ter quarto, como edícula quarto-sala, mas para ser casa tem de ter cozinha, a cabeça da casa.

Armários e guarda-roupas são também nossos retratos existenciais e históricos, mostrando quem somos, como vivemos e como fomos.

A área de serviço é intestino da casa, por onde sai o lixo e a sujeira das roupas, mas com quadro na parede ou uma planta num vaso, pronto, vira área humana.

E mais humana é a casa com cachorro ou gato, esses bichos que escolheram viver com a gente, talvez porque também gostem de morar em casas, os lugares mais humanos do mundo.